Paul Lafargue nunca conseguiu livrar-se da relação com Karl Marx porque se casou com uma filha dele, Laura, e até hoje não se fala do seu famoso livro O Direito à Preguiça (editado em Portugal em 2016 pela Antígona) sem referir o amigo de Engels e autor de O Capital..Nascido em Cuba, Lafargue publicou ao longo de três décadas uma verdadeira enciclopédia de artigos e livros que o identificaram para a história como um jornalista revolucionário, socialista e marxista. O pacto de suicídio com a mulher interrompeu a sua vida aos 69 anos..Lafargue escreveu sobre inúmeros temas, mas foi o seu primeiro trabalho que o colocou no imaginário de trabalhadores e patrões, respetivamente, com o sonho e o pesadelo de diminuir a jornada de trabalho de 12 ou mais horas. Nele torna a sua análise tão marxista como o sogro, que chegou a dizer que Lafargue era o maior marxista à face da Terra, e devolve ao operário a exigência de equacionar o valor do seu trabalho. Aliás, Lafargue foi um dos fundadores do Partido Operário Francês e na preparação da 1.ª Internacional passou pelo nosso país para montar a secção portuguesa, tendo mantido inúmeros contactos com organizações operárias nacionais..Não se fica por aí e, logo no primeiro parágrafo de O Direito à Preguiça, Paul Lafargue recorre a Deus e utiliza um dos sete pecados capitais inventados pela Igreja para promover os direitos dos operários no seu livro: "Uma estranha loucura domina as classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Essa loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda pelo trabalho, levada até à exaustão das forças vitais do indivíduo e da sua prole. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas e os moralistas santificam o trabalho. Homens cegos e limitados quiseram ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e desprezíveis quiseram reabilitar o que o seu Deus amaldiçoara.".O título provocativo do ensaio contrasta com o mundo em que O Direito à Preguiça foi escrito. Os operários asfixiados por longos dias de trabalho nas fábricas que geraram a Revolução Industrial não tinham direito ao descanso, sendo essa situação a que domina o primeiro capítulo. Criticando duramente a industrialização, Lafargue vai buscar exemplos drásticos de outras sociedades e acusa: as vítimas da escravatura tinham horários de trabalho inferiores aos dos operários que enriqueciam o capitalismo do seu século, o XIX. Contestava os benefícios da industrialização também, porque a existência das máquinas, em vez de diminuir as jornadas, aumentava-as, além de alargar a exploração às mulheres e às crianças e aumentar gradualmente o nível de pobreza desses milhões de trabalhadores..Em O Direito à Preguiça, Paul Lafargue espanta-se com uma situação que lhe parece irreal, a de os próprios trabalhadores estarem dominados por uma "estranha loucura". Ou seja, aceitavam essa sua exploração como normal, mesmo se resultasse na abolição de feriados e de dias livres a troco do aumento da produção; em vez de a contestarem, desejarem ser homens livres e terem direito a consumir o que eles mesmos produziam..A repercussão do ensaio do genro de Marx foi muita ao longo dos últimos 130 anos, tanto que em 2011 a Universidade Livre de Bruxelas decidiu ocupar o dia 23 de novembro num conclave internacional e multidisciplinar de especialistas sobre a "necessidade e a urgência" do direito à preguiça. Houve quem defendesse que o último século tinha sido de grande esforço por este ou que o mesmo poderia redefinir a prosperidade ao ser uma reivindicação crucial..Um debate com frases com efeito como "viver e morrer para trabalhar" ou "se o direito à preguiça fosse implementado reconquistava-se a verdadeira natureza do tempo". Nada que o ensaio de Lafargue já não defendesse quando negava o efeito mitológico de que a máquina libertaria os homens; ou quando defendia o benefício para a economia que seria o consumo da própria produção pelos operários, até quando blasfemava contra o sentimento de escravo voluntário existente nos operários explorados..Mas nas conclusões do encontro sobre O Direito à Preguiça há afirmações que recuperam os ideais propostos por Lafargue quase século e meio antes: "Um inquérito de 2010 confirma que é o trabalho que continua a estruturar as vidas e as identidades dos cidadãos, mas as populações europeias desejam que o trabalho tenha um lugar menos preponderante nas suas vidas." Além de o objetivo ser em muito o direito à preguiça anteriormente defendido por Lafargue, outra das razões para as queixas dos europeus é a degradação das condições de trabalho - tese já defendida também por Lafargue..Mesmo que Marx nem sempre apoiasse as propostas de Lafargue, 130 anos depois o investigador argentino Eduardo Sartelli considerou nesse encontro em Bruxelas que o livro de Paul Lafargue era "a conclusão de O Capital" e que só menos trabalho resolverá as crises do capitalismo..O legado sobre a O Direito à Preguiça de Paul Lafargue nunca foi unânime na sua interpretação e o seu suicídio, e o da mulher, foi utilizado para o apoucar. Lenine foi liminar ao considerar que um socialista não podia acabar com a sua vida enquanto estivesse habilitado a servir a causa. Se não se tivesse casado com Laura Marx, talvez fosse mais fácil escapar às críticas, no entanto sem o trabalho do casal suicida teria demorado muito mais a tarefa de recuperar após a sua morte os textos deixados por Marx. .