Provavelmente, a ilustração mais sugestiva da preguiça cinematográfica passou a estar não nos filmes, mas nas nossas casas. Fomos nós, castigados pelo stress laboral, esquecidos das maravilhas da cinefilia, que passámos a dispensar as peculiares sensações das salas escuras e ficámos em casa a consumir as delícias do streaming para depois, no emprego, nos gabarmos das séries que andamos a ver por atacado... Grandes séries, por vezes, é verdade..Enfim, convenhamos que a nossa vida pecaminosa não é nada que o cinema não tenha sabido encenar repetidamente. Mais do que isso: obsessivamente - dos mestres primitivos como David W. Griffith até aos moralistas modernos como Michael Haneke, sem esquecer, claro, clássicos como Renoir, Minnelli ou Antonioni..Quando pensamos nas formas de representar os sete pecados mortais, lembramo-nos menos das variações paródicas e mais do extremismo dramático - em boa verdade, genuinamente trágico - de David Fincher. Aconteceu em Seven, entre nós lançado com o subtítulo 7 Pecados Mortais: tem data de 1995 e, se o leitor nunca viu, convém saber que as linhas que se seguem revelam um momento fulcral do filme..Morgan Freeman e Brad Pitt interpretam dois polícias que perseguem um serial killer, deambulando por cenários de absoluto negrume em que já não é possível encontrar qualquer réstia da mágoa romântica de Raymond Chandler. Descobrem, assim, que o assassino está a cumprir um ritual macabro: encena a morte de cada uma das suas sete vítimas através de alguma associação com um pecado mortal e, mais do que isso, deixando escrita a identificação desse pecado no local do crime..Assim acontece quando é encontrada a vítima da preguiça (sloth está escrito na parede de fundo): um homem jovem, muito magro, que terá sido colocado em estado vegetativo, preso a uma cama, até morrer... Só que, quando um dos agentes da polícia se aproxima do seu rosto, dele emana um derradeiro suspiro, tão súbito e assustador que dir-se-ia proveniente já do país dos mortos..Não é fácil de ver. E não apenas pela brutalidade da situação. Também porque Fincher expõe a perturbante coexistência da certeza irreversível da morte e do desejo de viver - tudo isto nas paisagens de um universo em que as forças do Bem parecem quase sempre mais frágeis do que as estratégias do Mal. Enfim, ninguém disse que o cinema cedeu à preguiça de se confundir com uma telenovela..La Dolce Vita (1960) Eis a assinatura felliniana por excelência. Chamaram-lhe em português, como bem sabemos, A Doce Vida. Mas sabemos também que não é uma mera questão de "doçura" que está em jogo. Quando vemos Anita Ekberg a dançar na Fonte de Trevi, em Roma, sob o olhar cansado de Marcello Mastroianni, compreendemos a terna tristeza de Federico Fellini: ele filmava esse misto preguiçoso de utopia e desencanto através do qual se vivia uma "libertação de costumes" que nem sempre nos trouxe os paraísos prometidos... Estranhamente (ou não), La Dolce Vita fixou-se no nosso imaginário como o mais europeu dos filmes..A Preguiça (1962) Foi no tempo em que as longas-metragens por episódios (sketches) eram mesmo populares. A produção francesa, em particular, apostava em reunir pequenas coleções de cineastas consagrados (estamos em plena nouvelle vague, convém não esquecer) para abordar temas insólitos e sugestivos. Jacques Demy, Claude Chabrol e Jean-Luc Godard destacavam-se entre os autores dos episódios de 'Os 7 Pecados Mortais', cabendo a Godard o retrato da preguiça. Nele encontramos o americano Eddie Constantine, na altura grande estrela da produção europeia, numa espécie de autorretrato paródico, interpretando um ator famoso que, preguiçosamente, se mostra pouco interessado na ostensiva cena de sedução (leia-se: nudez) protagonizada por uma assistente... Porquê? A explicação é gloriosamente pecaminosa: "Aborrece-me ter de me vestir depois.".Zootropolis (2016) Num dos cartazes deste desenho animado dos estúdios Disney, a personagem da preguiça surge numa pose (preguiçosa, pois claro!) que não podia ser mais eloquente. Trata-se de um empregado de balcão do departamento de trânsito (num mundo habitado pelos mais variados mamíferos) que pergunta, em letras muuuito dolentes:"Qual é a pressa?" Além do mais, esta animação é a ilustração muito real (que também é digital) da possibilidade de construir fábulas inteligentes e cativantes sem ceder à preguiça criativa em que os super-heróis vão agonizando..*João Lopes é crítico de cinema, argumentista e realizador. Colabora com o Diário de Notícias, a SIC Notícias e a Antena 1. Professor na Escola Superior de Teatro e Cinema, é autor de Cinema e História: Aventuras Narrativas (ed. FFMS).