Sociedade
03 julho 2016 às 10h40

Os campos de arroz que passam ao lado da crise na Comporta

Não é só de praia e sol que vive a região. Muito do carolino que nos chega ao prato é ali produzido por 200 rendeiros da herdade

Roberto Dores

De pulverizador às costas, Francisco Jones avança pela lavra de arroz. "É o melhor que há. Alguém tem dúvidas?", questiona em tom desafiante, enquanto lança uns borrifos de pesticida sobre as "malditas" ervas daninhas. "Houve para aí qualquer coisa. Neste ano estão mais custosas de morrer e precisam de duas aplicações. Uma para ficarem doentes e a segunda para as matar", revela ao DN no meio de verdes campos a perder de vista entre o Carvalhal e a praia do Pego. É por ali que mais de 200 rendeiros da Herdade da Comporta sobrevivem e produzem o arroz carolino que lá para final do ano estará à mesa dos portugueses. Aparentam alguma indiferença perante a crise que atingiu a família Espírito Santo e o processo de insolvência em marcha, mas assumem receios rumo ao futuro.

"E se alguém um dia compra isto sem saber que nós cá estamos? Nem quero acreditar que isso seja possível", pergunta e responde Francisco Jones, de 59 anos, que só à sua conta explora hoje 13 hectares de arroz - equivalente a outros tantos campos de futebol - dos cerca de mil existentes naquela que é a maior propriedade privada do país, com um total de 12,5 mil hectares, cerca de uma Lisboa e meia. Abrange as freguesias do Carvalhal e da Comporta, nos concelhos de Grândola e Alcácer do Sal. A renegociação das rendas começa neste mês (ver perguntas).

Se as contas baterem certas, os 13 hectares de Jones vão render 78 toneladas, à ordem de seis mil quilos por hectare. "É daqui que como, bebo e visto desde sempre. Nunca ganhei um tostão fora desta terra. Ainda do tempo do meu avô e do meu pai", recorda, tendo-se tornado rendeiro da Herdade da Comporta aos 24 anos.

Começou logo a produzir arroz, conferindo-lhe hoje um estatuto de "especialista no terreno" entre os vizinhos que estão nas lavras a centenas de metros, mas com quem comunica gritando a plenos pulmões. "A vida do campo é assim, sempre foi assim, a descoberta daquela praia ali ao fundo [Pego] é que transformou isto na galinha dos ovos de ouro. Mas há lugar para todos", afirma, enquanto termina a monda e descalça as luvas, apontando para uma linha que conhece como a palma da mão, mas que o cidadão comum não descortina.

"O meu pai rompeu isto tudo. Onde havia silvas e canas ele pôs tudo a arroz", diz com orgulho, deduzindo que a arte do progenitor é reveladora dos "bons agricultores" há décadas radicados na Comporta. "Em equipa que ganha não se mexe. Esta terra dá de comer a muita gente", insiste, admitindo que pode haver pó por altura do "fabrico da terra" - quando as charruas e as alfaias entram em campo - ou na época da queima para fazer a limpeza dos terrenos. E os mosquitos? "Escusam de culpar os arrozais. Se não houvesse cá arroz continuava a haver mosquitos. A água está cá sempre", justifica, alertando para a quantidade de nascentes do Pego que tornam a zona rica em recursos hídricos.

Garantia de reservas generosas para a rega do arroz com uma técnica simples. "A água vem do açude até este canal, que nós tapamos para que comece a encher. Quando chegar ao nível onde está o tubo da canalização em cimento, a água é distribuída pelas lavras. Depois de regar, voltamos a abrir o canal" revela Francisco Jones, que, à primeira vista, espera uma colheita dita normal a partir de outubro e até dezembro.

Começou a semear na época recomendável - entre 20 de abril e 20 maio - ao contrário de alguns vizinhos afetados pelo inverno tardio que encharcou as terras permitindo a entrada das máquinas apenas no princípio de junho. "Nestes casos haverá dificuldade em dar grão", diz, admitindo que a chave do sucesso será o mês de setembro, já que "se for quentinho ainda pode safar alguma coisa", diz o rendeiro, revelando que após a colheita o arroz da Comporta segue viagem para a fábrica de Oliveira de Azeméis, havendo ainda alguma produção do Grupo Espírito Santo que é encaminhada para os secadores de Coruche.

"Conhece a nossa batata-doce?"

Ali por perto, mesmo paredes--meias com a praia do Pego, que se celebrizou há um ano com a distinção do melhor bar de praia do mundo (pela revista Condé Nast Traveler), Fernando João dedica a manhã à batata-doce, ao som do coaxar das rãs que habitam o canal de rega e dos dois leitões que lançam grunhidos sempre que alguém se aproxima da pocilga na esperança de que seja fruta. Estamos agora entre pequenas parcelas de terreno, todas cultivadas, a cargo de vários rendeiros, onde crescem frutícolas e hortícolas na terra escura característica desta zona.

Fernando também é orizicultor, detendo quatro hectares que também crescem a bom ritmo, apesar de ter tido a necessidade de carregar mais nos fitofármacos contra a orelha-de-mula e o junquilho. Depois de uns anos menos bons, além de produções mais curtas, o preço no mercado também caiu. "Há 15 anos vendi arroz a 40 cêntimos e agora anda pelos 31 ou 32", lamenta, denunciando que piores ainda foram os tempos em que se vendeu "gato por lebre".

Reporta-se a arroz que vinha de "fora já descascado e amarelo", diz, revelando que era "branqueado" em Portugal, acabando por entrar no mercado com "carimbo da Comporta", relata Fernando João, que foi regar o arroz logo às 07.00. Mas três horas depois já tinha pegado na sachola para percorrer os trilhos onde a batata-doce está semeada, traduzida num campo de folhas verdes, a que os aspersores dão de beber.

"Conhece a nossa batata-doce? Coisa boa. É da terra e do clima que aqui temos", regista com entusiasmo, embora reconheça que é preciso andar sempre a arrancar ervas. "Isto não para de crescer", queixa-se, admitindo que a saúde já não permite grandes veleidades. Tem 67 anos e uma operação à coluna, enquanto a sua mulher também já não é a ajuda de outros tempos. Mas não desarma.

Ao lado da batata--doce, ainda há de vingar melancia, feijão, milho e batata branca. "Temos é de andar sempre em cima disto", acrescenta, revelando que o trabalho do campo não tem férias, pelo que se tem limitado a ver os turistas passarem para a praia sem a curiosidade de saber quem por lá tem andado por estes anos.

E se tem havido gente famosa naqueles areais. Desde Charlotte Casiraghi, a filha da princesa Carolina do Mónaco, ou Christian Louboutin, que ficou famoso pela criação dos sapatos de luxo com sola vermelha. Carla Bruni e o marido Nicolas Sarkozy, anterior presidente da França, convidados pela sua madrinha e antiga modelo francesa Farida Khelfa. Além de ter sido a praia de eleição da família Espírito Santo antes do colapso do GES. Está por aqui a casa nas dunas que Ricardo Salgado construiu e onde passou os últimos verões, desde 2011.

Câmara de Alcácer apoia rendeiros

Atentos à evolução dos acontecimentos estão os moradores da Torre, o aglomerado de 37 fogos entre Comporta e Carvalhal, onde apenas dois residentes têm escritura pública celebrada, enquanto outros têm apenas contratos-promessa de compra e venda e contratos de alojamento em regime de comodato.

"Aqui vive-se bem, para quem gosta do sossego", testemunha Joaquim Ramusga, um dos dois moradores que garantiram a escritura, depois de ali ter construído a casa há 24 anos, mas sentiu o "descanso ameaçado" com o projeto turístico que esteve prestes a "encostar" à sua casa 340 moradias de dois campos de golfe. "Assim que houve o pedido de resgate do Sócrates aquilo foi tudo por água abaixo. Eu gostei", sublinha, admitindo que a terra até poderia colher algumas regalias. "Sobretudo no combate à desertificação", diz, numa altura em que os mais novos fazem pela vida entre a agricultura e a construção que vai mexendo para os lados do Pego.

Mas é com os vizinhos que está preocupado este natural de Vieira de Leiria que escolheu a Comporta para passar a reforma após ter trabalhado em Setúbal como bancário. "E se um dia tiram daqui as pessoas sem contrato mas que já pagaram as casas? E o que vai sobrar para os herdeiros", questiona, pedindo apoio à Câmara de Alcácer do Sal, sobretudo em assuntos jurídicos.

O presidente da autarquia garante estar atento. Vítor Proença compromete-se a "defender moradores e rendeiros", aludindo ao conjunto de "direitos adquiridos, alguns ancestrais". Assume a "mais-valia" que a Herdade da Comporta representa para a região em termos turísticos e agroindustriais, destacando que só em produtos hortícolas atinge as "60 mil a 70 mil toneladas".

O edil avança ainda uma informação que ilustra a "aposta na qualidade da vida das pessoas", apesar da situação delicada gerada pelo processo de insolvência, tendo em carteira a construção da Estação de Tratamento de Águas Residuais, em conjunto com as Águas Públicas do Alentejo e a própria Herdade da Comporta. "É uma obra urgente para tratar efluentes e contamos que o projeto possa avançar em 2017", resume Vítor Proença.

O DN contactou na terça-feira, por e-mail, a administração da Herdade solicitando um ponto da situação sobre os rendeiros e moradores da Comporta, mas não obteve resposta em tempo útil.