24 setembro 2016 às 01h35

O praxódromo de Lisboa é o jardim do Campo Grande

De centro de praxes a centro de estudos, dos ciclistas ao paddle e à bisca. Jardim de 15 hectares está renovado e eclético

Rute Coelho

Com a Cidade Universitária de um lado, a Universidade Lusófona do outro e ainda a proximidade de outras universidades, como o ISCTE, o Jardim do Campo Grande, em Lisboa, é por estes dias de arranque do ano escolar um gigantesco praxódromo. Ao início da tarde de quinta-feira, quando entrou o outono, a tela verde e romântica do jardim, com as suas palmeiras, plátanos e o icónico lago com barcos, estava povoada de grupos de veteranos de capas negras a darem ordens a caloiros, indiferentes aos apelos do Governo para se combaterem as praxes que humilham e as próprias comissões de estudantes que as lideram.

Aqui e acolá, no jardim do Campo Grande, viam-se grupos de membros de comissões de praxe a ordenarem caloiros a fazer flexões, a entoarem cânticos obscenos com penicos de plástico na cabeça ou a lançarem-se ao lago num escorrega improvisado com um plástico dobrado.

"Vão ser batizados aqui com a água do lago", explicava ao DN João Antão, de 19 anos, membro da comissão de praxes do curso de Engenharia de Telecomunicações e Informática (ETI) do ISCTE.

Dezenas de caloiros mostraram como se entoam serenatas à comissão de praxes de ETI. Numa delas, ao som da música "Viver a Vida, Amor", do José Cid, podia ouvir-se esta inspirada letra: "Vem chupar-me a p... amor, que a t... não passou, nem vai passar!". No hino do curso ouviam-se ainda estrofes etílicas como "whisky ou sangria, vinho tinto ou Casal Garcia" que a malta estudante, já se sabe, não é esquisita.

Entre gargalhadas, palmas, saltos e gritos de "ETI", João Antão e João Cardoso lá vinham garantir em apartes que "as praxes do ISCTE não têm má fama" e "os caloiros não são obrigados a nada".

Não são argumentos que colham junto do ministro da Ciência, Tecnologia e do Ensino Superior, Manuel Heitor, que defendeu, em declarações ao DN em agosto, que as universidades "devem combater as comissões de praxes e a sua prática interna", avisando que não basta proibir as praxes dentro das instituições. Manuel Heitor até prometeu que ia "escrever, no início de setembro, a todos os dirigentes estudantis, a condenar o uso da praxe e a pedir para não valorizarem qualquer relacionamento com as estruturas que se têm organizado dentro das instituições e para as combaterem". Na sequência desta ideia o Governo nomeou um grupo de trabalho, liderado por João Teixeira Lopes (Universidade do Porto), e por João Sebastião (ISCTE) que vai realizar o primeiro estudo de dimensão nacional sobre o fenómeno das praxes.

No Jardim do Campo Grande tem-se logo uma ideia dessa dimensão. Um grupo de raparigas do curso de Direito da Universidade Clássica de Lisboa descansava na relva com uns copos de cerveja comprados a 50 cêntimos cada, antes das tradicionais praxes que iam fazer aos caloiros. Beatriz Pires, do 3º ano de Direito, serviu de porta-voz do grupo: "Vamos para o Rossio batizar os caloiros na fonte." Cada faculdade tem a sua tradição, o batismo dos futuros licenciados em Direito da Clássica faz-se na Praça D. Pedro IV há já muitos anos.

O mini "Central Park" de Lisboa

Renovado há três anos, o maior jardim do centro de Lisboa, com 15 hectares de extensão, não é só dos estudantes. É dos apaixonados como André e Cláudia, é dos estrangeiros que chegam a Lisboa com malas carregadas de esperança, como o indiano Kulwinder, mas também do António, de 70 anos, que o recorda ainda com ringue de patinagem e carrinhos. O indiano Kulwinder, de 40 anos, usava o turbante de sikh (religião que funde o hinduísmo e o Islão) e estava sentado num banco de jardim com uma mala de viagem atafulhada e um saco de compras. Recusou ser fotografado mas contou que está em Lisboa há anos, a trabalhar numa fábrica de cerâmica nos arredores da capital. "Tenho a mulher e duas filhas na Índia", lamentou.

Um piquenique de aniversário

Num recanto, à sombra de uma árvore, fomos encontrar o cenário romântico perfeito: uma toalha de piquenique estendida na relva, uma cesta recheada e, em grande destaque, um bolo de anos em forma de coração vermelho com a mensagem "Parabéns, meu amor". André fazia 26 anos e a namorada, Cláudia, de 20, teve a ideia do piquenique e até foi ela a fazer o bolo. "Para ser algo diferente. Vamos sempre ao restaurante almoçar, assim é mais romântico", contou a sorridente Cláudia.

Até na profissão se encontram, ela como cabeleireira, ele como barbeiro, ambos a trabalharem em Odivelas. "Gostamos deste jardim, está agradável, renovado, embora ainda precise de mais algumas melhorias. À noite também já não assusta, está mais iluminado", comentou André.

O jardim tem ainda ciclovias, o restaurante Casa do Lago, por cima do lago é muito frequentado por estudantes, nove campos de paddle e o espaço do antigo centro comercial Caleidoscópio que vai albergar o futuro centro de estudos da Universidade de Lisboa (ver caixa). Tem também mesas para os mais idosos jogarem à bisca dos nove ou à sueca.

De fato e gravata, sentado num banco de jardim a olhar para o horizonte, estava António Rodrigues, de 70 anos, funcionário do vizinho Colégio Moderno, fundado pelo pai do antigo presidente da República e fundador do PS Mário Soares. "Os meus quatro filhos foram educados no colégio. Ainda não me quis reformar", contou. A família chegou a viver na zona do Campo Grande e os filhos frequentavam o jardim em crianças. "Iam para o ringue de patinagem". Hoje são os netos que gostam de ir ao Jardim com o avô. "Tenho uma neta com 11 anos e outro bebé com 18 meses". António mora há anos na zona da Belavista, em Lisboa, mas é na tela verde do Campo Grande que estão as suas melhores memórias.