Nos últimos dez anos, desvendaram no Instituto Gulbenkian de Ciência alguns dos processos genéticos e moleculares da evolução dos tumores e perceberam que tinham algo para dar aos médicos e aos doentes. Há dois anos, criaram uma empresa para pôr a ideia em prática. Desenvolveram tecnologias e softwares e já criaram alguns testes genéticos para avaliar o risco de cancro. Há poucos meses lançaram um teste chamado biopsia líquida, que dá informação sobre alguns tumores malignos a partir de uma análise sanguínea. Dentro de cinco anos, garante o cientista, ela será decisiva no despiste precoce de cancro..Qual é a vantagem da biopsia líquida em relação à biopsia tradicional?.A biopsia líquida é algo que já fazemos como rotina. Em vez de precisarmos de tirar um pedaço do tumor, geralmente por um processo invasivo e cirúrgico, o que fazemos é uma análise de sangue. Isto é possível porque os tumores libertam ADN, a sua informação genética, para a circulação sanguínea. Identificamo-los e fazemos a sua leitura. É outra maneira de fazer a biopsia..Quais são as vantagens?.Uma delas é que podemos fazer esta biopsia muitas vezes, o que num procedimento cirúrgico não é possível. E é mais representativa da doença como um todo. Numa doença metastática [com metástases] todos os focos, as metástases e o tumor, têm a sua natureza molecular, que pode ser distinta, e todos eles libertam ADN para a circulação. Portanto, quando analisamos o ADN na circulação representamos a doença toda, enquanto na biopsia do tecido, de um ovário, ou cancro de mama, por exemplo, só há a informação do bocadinho retirado..E quais são as desvantagens?.Com a biopsia líquida perdemos alguma sensibilidade. Temos um fator de diluição que é variável de tumor para tumor. Portanto, ela não vem substituir as biopsias tradicionais. Neste momento é um complemento que nos permite fazer a caracterização genómica de tumores, que de outra maneira não seria possível..Diz que as biopsias líquidas já se fazem por rotina. Como se chegou aqui?.A comunidade científica descobriu há 10 anos que os tumores libertam ADN para a circulação. Houve depois um processo de desenvolvimento de tecnologia para ir buscar este ADN circulante e foi necessário perceber se havia algum tipo de utilização clínica. Há um estudo em cancro de pulmão, para o qual já está protocolada a utilização da biopsia líquida, para avaliação de uma mutação de resistência a um determinado fármaco, e verificou-se que o ideal é fazer os dois tipos de biopsia. A tissular [com uma amostra do tecido] é mais sensível e a líquida é mais abrangente. Com as duas faz-se uma melhor representação do tumor..Mas a biopsia líquida já se faz na prática clínica?.Fazemos isto na prática clínica quando o médico pede. Os médicos pedem-nos informação sobre se um determinado tumor tem uma mutação específica. Por exemplo, no cancro de pulmão há um gene chamado EGFR que pode ter uma mutação, a T790M, e um doente com esta mutação deixa de responder a um determinado tipo de fármacos e passa a responder a outros. Fazemos isto, não somos os únicos, mas fazemos também a sequenciação do ADN e do ARN circulante. Isolamos todos os fragmentos do tumor para ler a informação e, com isso, fazemos panoramas mutacionais em pessoas que não estão a responder a tratamentos, para perceber as probabilidades de resposta aos fármacos. Fazemos isto numa base regular e não há muitos a fazer por uma razão muito simples: é preciso uma bioinformática muito de-senvolvida, porque são milhões e milhões e milhões de letras. Desenvolvemos de raiz uma plataforma de análise bioinformática que nos dá toda essa informação, que vai depois para o clínico..E toda a gente tem acesso a isto?.Não há razão para que não tenha. Isto é tecnologia no contexto da doença oncológica. Há outras doenças onde isto pode vir a ser relevante, mas ainda falta validação. Neste momento, uma parte significativa destes testes estão disponíveis no Serviço Nacional de Saúde, ou as seguradoras pagam..Para que tipo de cancros é que as biopsias líquidas já são uma boa opção?.Depende da fase do tumor. Para todos os tumores sólidos funciona. Há um ou outro tumor que não liberta ADN para o sangue, mas para a urina e para o líquido cefalorraquidiano, como os tumores do sistema nervoso central neste último caso. O da próstata, numa fase inicial liberta essencialmente para a urina. A questão é saber qual é o fluido mais informativo para a doença no seu estado de desenvolvimento e naquele doente. Temos tido muita experiência com cancro do pulmão, do ovário, da mama e cólon, e alguma experiência em cancros mais raros, como sarcomas, sobre os quais há pouca informação disponível, e temos encontrado alguns caminhos para doentes com sarcoma. Para o cancro da próstata estamos a trabalhar, não é claro ainda o que podemos fazer..O que a vossa equipa faz é desenvolver esses diagnósticos e novas possibilidades de tratamentos mais precisos?.O que fazemos aqui é pegar na ciência, no seu estado mais próximo da aplicação e implementamos e otimizamos os procedimentos de laboratório, o que não é trivial. Conseguimos aqui algo que poucos conseguem fazer no mundo, que é pegar em ARN circulante, a molécula mensageira da informação genética, que é muito instável. Vamos buscá-la à circulação, estabilizamo-la, lemo-la e usamos isso no cancro do pulmão para ir à procura de umas fusões de genes que são informativas para certas terapias. Temos muita otimização laboratorial, e é isso que permite baixar os preços. Se não fizermos esse esforço, tudo isto fica inaceitavelmente caro para o doente..Pode-se dizer que isto está a começar e que o melhor ainda está para vir?.Acho que sim, que o melhor está para vir. Nos próximos anos vamos ver uma adoção generalizada da biopsia líquida. A biopsia tissular não está obsoleta de todo, continua a ser indispensável, mas passamos a complementá-la com a biopsia líquida. Estamos a começar a implementar isso para avaliar a resposta às terapias e eventuais resistências aos fármacos. Onde espero que haja um grande impacto da biopsia líquida em breve é na deteção precoce do cancro. Não estamos lá ainda em termos de validação científica, mas os ensaios estão a decorrer. Em muito poucos anos vamos ter como rotina o despiste da doença oncológica por análises de sangue em biopsia líquida. Não falta muito. Cinco anos no máximo, é a minha expectativa. Faz parte do nosso trabalho desenvolver testes específicos a preços acessíveis..Perfil de José Pereira Leal.Depois de fazer todo o percurso académico nos Estados Unidos e no Reino Unido, onde foi também investigador, José Pereira Leal regressou a Portugal em 2006, para liderar um grupo de investigação no Instituto Gulbenkian de Ciência. Há dois anos criou uma empresa com o grupo Germano de Sousa para desenvolver testes genéticos e de diagnóstico.