Governo forçado a refrear otimismo. Austeridade fica, mas é diferente

Combustíveis, veículos, tabaco e bebidas alcoólicas encarecem. Centeno "encontra" 1100 milhões para satisfazer Bruxelas
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O princípio económico parece simples: a proposta de Orçamento do Estado para este ano (OE), apresentada ontem, não tem passes de mágica nem faz desaparecer a austeridade; transfere-a dos rendimentos para o consumo.

Não é o "enorme aumento de impostos" que Vítor Gaspar anunciou em 2012, mas é "indubitável" - e as palavras são de Mário Centeno - "que é um nível de fiscalidade maior do que era".

Entre a espada da Comissão Europeia (CE) e a parede dos acordos que assinou com os parceiros de esquerda, o governo foi obrigado a ir buscar dinheiro onde podia: aos impostos indiretos. E a reconfigurar, doseando o otimismo, as previsões macroeconómicas face ao draft orçamental que enviara para Bruxelas a 26 de janeiro. O crescimento do produto interno bruto (PIB), afinal, não será de 2,1% - vai ficar na casa de 1,8% - e o ritmo de consolidação das contas públicas terá de ser mais acelerado: ao invés dos 2,8% estimados há duas semanas, vai ficar nos 2,2% (ainda assim, dois pontos percentuais abaixo do registado em 2015), valor considerado "ambicioso" por Centeno.

Já o défice estrutural (indicador que exclui os efeitos do ciclo económico e as medidas extraordinárias), que tanta tinta fez correr nas negociações entre Lisboa e Bruxelas, garantiu o ministro, diminuirá 0,3 pontos percentuais face ao esboço de janeiro - para 1,7% do PIB.

Foi, contudo, in extremis que o governo de António Costa obteve luz verde da CE. Basta ver que Centeno, que falou do documento como "um OE diferente" e que "demonstra que há alternativa", teve de lançar mão de medidas adicionais, de carácter estrutural, para evitar um chumbo de Bruxelas. Foram 11, no valor de 910 milhões de euros - a Comissão Europeia prevê que as medidas rendam menos 155 milhões do que o executivo espera -, e ainda mais 215 milhões de receitas suplementares, que até então o executivo desconhecia.

No total, 1125 milhões de euros (0,54% do PIB) que Centeno explicou em detalhe numa carta enviada ontem ao vice-presidente da CE com a tutela do euro, Valdis Dombrovskis, e ao comissário europeu para os Assuntos Económicos e Financeiros, Pierre Moscovici. A mais significativa não deixa, porém, de ser um movimento arriscado. O governo recuou na promessa de reduzir em 1,5 pontos percentuais a taxa social única (TSU) paga pelos trabalhadores com salários abaixo de 600 euros - empurrando-a para 2017 -, o que permite um acréscimo de receita na ordem dos 135 milhões de euros.

Essa era matéria vertida nos acordos de esquerda e que, apesar da desvalorização em público tanto de BE como de PCP, não caiu muito bem. Fonte bloquista diz mesmo que "este efeito [contrário à recuperação de rendimentos] deve agora ser compensado".

Seja como for, será sobre o consumo que esta nova austeridade vai incidir, com a classe média a sair mais penalizada.

Com o aumento do imposto sobre os produtos petrolíferos (ISP), que se traduzirá num aumento de seis cêntimos por litro de gasóleo e gasolina, o governo espera arrecadar 120 milhões de euros. O imposto sobre veículos (ISV) vai crescer 3% na componente cilindrada e entre 10% e 20% na componente ambiental, com um desagravamento para os menos poluentes com o intuito de incentivar a compra de viaturas menos poluentes. Com a atualização dessas tabelas, o Estado receberá 660 milhões de euros em ISV.

O maço de tabaco passará a ser sete cêntimos mais caro, com o acréscimo a render ao erário público cem milhões de euros, ao passo que o imposto aplicado à cerveja, às bebidas espirituosas e aos vinhos licorosos crescerá 3%. Já o imposto do selo sobre o crédito ao consumo será agravado em 50%.

Com o IRS, o IRC e o IVA apenas com mexidas pontuais - o IVA da restauração é a exceção -, o governo vai eliminar as isenções de IMI para fundos de investimento (pode valer mais 50 milhões de euros) e a contribuição aplicada sobre o setor bancário (que incidirá sobre todos os bancos) para o Fundo de Resolução subirá e deverá render igualmente 50 milhões.

Saem dois, entra um

Já no plano da função pública, Centeno adiantou que haverá uma nova regra para a contratação. Ou, sendo fiel às suas palavras, vai verificar-se uma "redução do número de funcionários apenas pela gestão das entradas e saídas". Traduzindo: por cada dois trabalhadores do Estado que saia, apenas um entrará.

No final do ano, serão menos dez mil funcionários públicos e uma poupança de cem milhões de euros, anteviu o ministro.

Por outro lado, no que toca às famílias, desaparece o quociente familiar e entra em vigor um novo regime, que prevê uma dedução de 550 euros por filho em sede de IRS.

O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, garantiu a esse propósito que a classe média não será prejudicada, salientando que "atualmente 70% dos agregados estão num escalão de rendimento em que não têm nenhum benefício do quociente familiar".

Medidas à parte, e após um processo negocial de constantes avanços e recuos nas previsões, Centeno garantiu não se sentir diminuído. "Fragilizado com críticas é algo que nunca me vai ver", respondeu já na reta final da conferência de imprensa no Terreiro do Paço.

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