João Magueijo: "Nasci num país do terceiro mundo. É isso que me faz lembrar Portugal"
O cientista português João Magueijo estava de férias algures na Grécia. A entrevista estava combinada e ele a sugerir que se fizesse ora via Skype ora via WhatsApp e sempre sem marcar a hora e o dia para a conversa. Parecia que estava no laboratório a testar a sua teoria da velocidade da luz variável em sucessivas tentativas em vez de fazer a abordagem certa e a conseguir provar. Até ao dia em que foi preciso pôr os pés à parede e fazê-lo descer à Terra. Aviso: na "bagagem" para a entrevista estavam os seus três livros: Mais Rápido que a Luz, a contestação à teoria da relatividade de Einstein; O Grande Inquisidor, a história do cientista Ettore Majorana, e Bifes Mal Passados, uma crítica devastadora aos ingleses.
Reparei que está quase a chegar aos 50. É hora de começar a escrever as memórias ou ainda não?
Ainda não, isso das memórias também não é uma coisa só para se fazer necessariamente com uma idade avançada. No fundo, o que tenho escrito tem muito de autobiográfico, ou seja, são memórias. Quanto a escrevê-las, estruturadas, que é uma coisa que o meu pai fez, não sei se valerá a pena pensar nisso.
Revê-se nas memórias que o seu pai escreveu ou ele fantasiou muito?
Toda a gente fantasia um pouco, pois é normal a pessoa ver as coisas de uma maneira e os outros verem de outra. Mas soube de coisas da sua infância que desconhecia, portanto houve novidades para mim, porque enquanto criança vê-se de maneira diferente de um adulto.
Quando escreveu Mais Rápido que a Luz já lá deixou grande parte das memórias?
Exatamente, mesmo no livro sobre Ettore Majorana há um elemento autobiográfico muito grande, o do narrador que anda à procura da personagem. Está-se metido dentro do enredo, ou seja, há um elemento autobiográfico como o que surgirá também nos Bifes Mal Passados, que é completamente autobiográfico.
Seduz-se mais o leitor quando se dá essa parte autobiográfica?
Creio que sim, especialmente na divulgação científica. Que tem sempre aquela tendência para cair em coisas muito áridas, o universo, a teoria e o lado científico, em que as pessoas desaparecem. Meter o cientista e o seu lado humano dentro da história é ótimo para explicar a ciência. Também é verdade que não se fazia muito isso antes daquele meu primeiro livro - o Watson tinha feito uma coisa muito pior ainda -, porque existe o tabu de que o cientista não deve falar sobre si.
Essa parte autobiográfica no livro também não foi para acertar algumas contas com a comunidade científica?
Acho que não fui assim tão vingativo, talvez honesto demais, de tal maneira que aquilo nunca é a preto e branco. É preciso ter noção de que a avaliação por pares não é aquela coisa cor-de-rosa e bonita como as pessoas de fora da ciência pensam. Era importante revelar isso, porque ao fim de uns anos aceita-se e somos amigos outra vez. Não foi estar ali tipo sniper a atirar para os outros, não.
Os cientistas nunca se gramaram muito uns aos outros, principalmente se há sucesso pelo meio?
Os políticos são piores, os futebolistas então nem falemos deles e os jornalistas também, imagino. É uma coisa humana, não é? Creio que isso é muito humano, mas eu não levo isso muito a sério e essa é a parte boa da coisa nesse livro. É que pode-se ter essa ideia mas no fim há também um certo elemento autodepreciativo que é importante. As pessoas não devem levar essas coisas demasiado a sério, são normais, são naturais e fazem parte da nossa constituição genética, no fundo. Repito, não é uma coisa que se deva levar demasiado a sério.
Penso que esteve de férias na Grécia. Este país também não merece um bom livrinho como o dos Bifes?
Curiosamente, 80% de os Bifes foram escritos na Grécia, de uma assentada numas férias há muito tempo. Acho que todas os países e pessoas merecem um livrinho desses! Passo quatro meses do ano em Itália e tenho a noção clara de que ali existe muito material também. No entanto, a razão pela qual escrevi os Bifes foi por causa do complexo de inferioridade dos povos latinos em relação aos do Norte, pretendia inverter a situação... Coitados, já estão com tantos problemas.
A Grécia, então, não justifica um livro?
Justifica, mas é um disparate estar a bater no ceguinho. Obviamente que a qualquer lado onde se vá encontramos material para escrever uma coisa demolidora, a questão é se valerá a pena fazê-lo? Nos Bifes, era uma carta de amor e ódio à Inglaterra.
Onde existia também alguma violência conjugal.
Sim, mas já celebrei as bodas de prata dessa reunião! Às vezes aquilo é demais na Inglaterra e a pessoa chateia-se, mas não queria estar em mais lado nenhum. Tenho uma noção muito clara de que a minha carreira científica está completamente ligada à comunidade científica inglesa e deriva dela.
Foi dos 48% que ficaram chocados com o referendo à União Europeia, com o brexit?
Fiquei um bocado admirado, mas o resultado foi tão próximo que podia cair para um lado ou para o outro. Acho estranho que tenha havido pessoas de um lado e do outro por razões muito diferentes. Pessoas de esquerda de um lado e do outro, pessoas com argumentos razoáveis de um lado e do outro, e pessoas com argumentos completamente estúpidos de um lado e do outro. Digamos que o que aconteceu foi muito simplista. Agora, seja o que Deus quiser.
Se tivesse escrito os Bifes depois do brexit manteria tudo igual?
Creio que sim. Até porque o elemento de xenofobia que aparece muito nos Bifes estará por detrás do brexit... Notei uma atitude de pessoas de esquerda que achavam inaceitável este trade deal entre os Estados Unidos e a União Europeia, que ia fazer ir a lei laboral regredir na Europa umas décadas e achavam importante a Inglaterra sair por essa razão. Isto é uma coisa muito pouco divulgada na imprensa, mas houve um grupo de pessoas que votaram por essa razão. Obviamente, há o lado da estupidez inglesa, que é muito fácil caricaturar mas, ao mesmo tempo, o brexit não foi só isso. É preciso respeitar as pessoas que votaram para sair, pois muitas ficaram escandalizadas por não perceberam a posição do outro lado. Há muitos argumentos à esquerda pelo brexit; que é sindicalista, pró-comunista e pró-socialista. É estranho que as pessoas não se apercebam do perigo que vem da União Europeia.
Já o ouvi dizer várias vezes a palavra "esquerda". Quer dizer que se situa à direita politicamente?
Eu? Não, estou à esquerda. É só a explicação de um argumento.
Qual é o país mais demente, a Inglaterra com o brexit ou os Estados Unidos com Trump?
É, sem dúvida, os Estados Unidos com o Donald Trump, porque o brexit ainda tem um elemento racional. O brexit é mostrar os ingleses a serem parvos e xenófobos; Trump é mesmo estupidez primária. Acho que é mais improvável o Trump ser eleito do que o brexit.
Enquanto cientista terá de deixar a Inglaterra por causa do brexit?
O problema não é tanto o brexit, é mais o lado UKIP do brexit. Nesse sentido há perigo. Posso dizer que o Imperial College está neste momento a fazer os movimentos para sinalizar todos os europeus que lá estão, porque isto é um problema para o empregador. Tem de obter vistos e o mais simples é tentarem a dupla nacionalidade para os de fora. A menos que exista uma grande alteração política e eleitoral, não é perigoso.
O eleitorado inglês não se sentiu defraudado com todas as mentiras dos partidos sobre o brexit?
Com certeza, nomeadamente logo no dia seguinte quando a libra entrou em queda livre. Nos próximos meses vai haver uma situação em que as pessoas dirão "fizemos um grande disparate". Isto de apanhar com o futuro em cima é muito complexo.
E o segundo referendo?
Não é uma hipótese posta de parte, mas deve ser difícil. Haverá problemas com a Escócia, onde pode haver um segundo referendo, mas em Inglaterra sempre houve um défice democrático tão grande que isto é compreensível. Cai-se no ridículo numa situação em que é possível eleger uma maioria absoluta com 33% dos votos, pois fica a ideia de que a maior parte dos votos vão para o lixo. Prometer referendos por tudo e por nada é a forma de colmatar esse défice democrático que existe na Inglaterra.
Portanto, pode dizer-se que vai continuar a viver e trabalhar em Inglaterra. Esse é o futuro?
Não sei, mas não estou à espera de que haja problemas com os vistos. Há uma probabilidade pequena, mas não zero, de haver uma reviravolta xenofóbica como em todos os países da Europa do Norte. E sermos todos postos na rua. O que era divertidíssimo, até porque, se cairmos numa situação de o UKIP chegar ao poder, então também não quero ficar em Inglaterra. E vai ser ser muito animado ver, por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde ir abaixo porque vive à conta de profissionais estrangeiros.
Que país escolheria para viver se não fosse a Inglaterra. Portugal?
Não, seria o Canadá provavelmente. Adoro o Canadá e já lá vivi dois anos. Com os problemas que possa ter, existe lá uma atitude em relação à emigração que é das mais iluminadas do mundo pelo modo como se esforça para acomodar as pessoas. Muito mais do que os Estados Unidos, do que a Austrália. É como em Londres, porque a capital é diferente do resto da Inglaterra - é importante dizer isto. Em Londres nunca houve essa atitude xenófoba, até por razões de demografia, mas o resto de Inglaterra tem essa posição. Basta ver como as coisas funcionaram no referendo. Portanto, o Canadá seria uma opção.
A sua Évora natal estaria sempre posta de parte, tal como a universidade de lá?
Infelizmente, sim. Já houve alturas em que tive essa ilusão de poder trabalhar em Portugal, mas perdi--a muito rapidamente. Estranhamente, tenho trabalhado em Itália nos últimos quatro anos e vejo que aquilo funciona. Tem caos, corrupção e aquela balbúrdia do sistema português, mas faz parte da tradição do país. Pode ser tudo feito à última hora mas funciona, ao passo que em Portugal não.
Lembra-se dos seus tempos de criança em Évora ou isso nunca lhe passa pela cabeça?
Isso vê-se nos Bifes, onde há imensas referências os meus avós e à Évora dos tempos em que lá vivi. É claro que me passa pela cabeça, pois a pessoa tem sempre as suas raízes, mesmo que ao fim destes anos todos me tenha tornado um cidadão do mundo completamente, mas vivo com essa memórias, na Grécia ou onde quer que esteja.
Fiz esta pergunta porque em Évora à noite vê-se melhor o céu. Essa visão teve alguma influência na escolha da carreira?
Não sei, porque saí de Évora muito cedo, aos 5 anos. Cresci em Lisboa e fiz lá a universidade. No fim dos anos 60 e princípios dos anos 70, Évora era muito primitiva, portanto não sei se as estrelinhas de lá foram importantes. É mais fácil dizer que as fui encontrar em Goa muitos anos depois. Nos anos 90, a Índia parecia outro planeta e Goa em particular ainda mais, era muito subdesenvolvida e fazia-me lembrar Portugal. Nasci no terceiro mundo, é isso que me faz lembrar Portugal. Onde a taxa de mortalidade infantil era a maior da Europa e as pessoas morriam muito. Admito que isso me terá influenciado muito mais do que o céu com estrelinhas, pois afetou-me brutalmente.
Então, a única influência para a escolha da sua profissão foia oferta de um livro de Einstein e de Infeld pelo seu pai. Isso é verdade?
Houve uma altura em que fiquei muito interessado na ciência em geral, especialmente pela química, mas também sempre tive aquele lado de engenhocas e de fazer experiências. O meu pai comprou--me esse livro quando eu tinha 11 anos, A Evolução da Física, que é lindíssimo e, realmente, mudou a minha vida. Esse livro teve muito mais influência do que qualquer outra coisa e foi o que me pôs nesta caminhada para tentar perceber a teoria da relatividade.
E por esse caminho acabou por desrespeitar a teoria do Einstein!
Isso é um exagero, não é nada assim. Basicamente, toda gente que faz ciência tem de questionar o que existe antes, senão estávamos a ensinar a ciência dos outros. Investigação é questionar o que se fez antes com coisas novas, que depois até podem estar erradas.
Havia demasiado respeitinho por Einstein quando publicou a sua teoria?
Creio que não, pelo contrário, sempre se fizeram coisas além do Einstein - não de uma forma tão bruta. Acho que respeitinho não é a palavra certa, pois fazer investigação não é uma questão de falta de respeito, é exatamente o contrário: mostrar respeito. Questionar e fazerem-se novas observações que invalidam uma teoria! Toda a investigação científica da física teórica é questionar Einstein.
Mas o seu primeiro artigo dói!
É verdade que o meu primeiro artigo sobre a velocidade da luz variável foi uma coisa completamente demolidora e a um nível a que as pessoas não estavam habituadas. Aquilo escandalizou. E não foi tanto estar a questionar Einstein mas a maneira como foi feito. Ainda hoje esse artigo é estranho, como reparei há coisa de um mês numa conferência em que tive de falar sobre esse artigo a propósito das leis da física serem feitas para não evoluírem. Aliás, a única maneira de não existir evolução dentro das leis da física é precisamente com a velocidade da luz variável. E eu já há imenso tempo que não pegava nesse artigo, portanto confirmei o lado brutal daquilo, não tanto o de escrever uma coisa contra Einstein, ou com pouco respeitinho, mas mais a sua brutalidade técnica.
Continua sem renegar o texto?
A velocidade da luz variável é como dizer que um animal não é um elefante, que o elefante é a velocidade constante da luz. Há muitas maneiras de fazer isso e aquela primeira maneira que eu e o Andy Albrecht propusemos foi muito radical. É mais fácil fazer previsões e arranjar uma maneira de a teoria ser falsificável. Tem havido um movimento para as coisas serem menos radicais nos últimos sete anos, o que é louvável porque se está mais ligado à experiência.
O físico Carlo Rovelli já fala da gravidade quântica em loop...
Estranhamente, dos encontros mais inesperados da velocidade da luz variável foi o com a gravidade quântica. Infelizmente, a ciência não é uma democracia, antes uma ditadura da experiência.
O problema foi mais a forma como explicou do que o conteúdo?
Não, a questão é que aquilo na altura não era uma moda. Era uma questão experimental, portanto ou a experiência verifica ou refuta a teoria. O que é muito difícil de explicar às pessoas, porque pensam que a ciência é como ter um partido político ou uma equipa de futebol. Não me custa trabalhar em coisas contraditórias, isto não é uma religião: posso dizer sim num artigo e não noutro. Não há contradição, apenas duas propostas diferentes.
Ainda não houve uma experiencia que confirmasse a sua teoria?
Neste momento estamos numa situação em que aquilo que se pensava que fossem verificações diretas nos últimos tempos - os últimos mil milhões de anos - não funcionaram da maneira como esperávamos. Portanto, tal como várias teorias cosmológicas, estamos dependentes do que aconteceu no universo primordial, no qual as verificações são muito mais indiretas. Ou seja, a teoria está muito mais desenvolvida e faz previsões muito mais concretas sobre o que terá acontecido no universo primordial. Acho que vai demorar ainda muito tempo para se saber se a teoria está certa ou errada, mesmo que inicialmente houvesse a esperança de haver uma forma, com relógios atómicos ou medições de quasares, que a provariam de maneira irrefutável. Infelizmente, não funcionou tão bem como gostaríamos e esta é a situação em que nos encontramos.
Não teve a sorte de Higgs com a verificação do bosão.
Isso não é verdade. Quantos anos foi preciso esperar entre o artigo e a verificação? Estamos a falar de 50 anos. E na altura ninguém pensava que aquilo era importante, tanto que se vai ver o número de citações dos artigos dele e ninguém o fazia nos primeiros sete anos. De repente, muda radicalmente e começa a ser levado a sério pelos teóricos e, depois, havia o grande problema experimental que era encontrar a partícula. Ou seja, num período de 20 anos ninguém levou aquilo a sério do ponto de vista teórico, e depois houve 30 anos para tentar encontrar a partícula. No nosso caso, ainda passam apenas 17 anos.
Vale a pena um investimento tão grande só para confirmar uma partícula?
Também podemos perguntar se vale a pena gastar tanto dinheiro em armas nucleares para não se fazer nada com elas ou então criar-se uma situação geopolítica pior. Essa não é a maneira correta de ver as coisas. Estas coisas têm ramificações tecnológicas que não são previsíveis à partida.
Portanto, vale a pena?
Não sabemos, acho que à partida vale a pena fazer esse investimento. Se vai ser um buraco ou se levará a tecnologias completamente diferentes não sabemos, mas vale a pena o risco. A física fundamental tem um passado em que inicialmente as coisas são filosofia, como é o caso da teoria da relatividade. Esta aceleração da tecnologia e da eletrónica também está associada ao que inicialmente era física fundamental. Quando se faz essa pergunta é sempre um bocado "então mas não se devia gastar este dinheiro todo em hospitais?" A verdade é que os hospitais estão todos apetrechados com coisas que derivaram de uma maneira ou de outra deste tipo de investigação, 50 anos mais tarde, cem anos mais tarde.
Continua a falar-se da teoria do Big Bang, e ninguém consegue estabelecer a verdade. Alguma vez chegaremos a uma conclusão nos próximos séculos?
Nos próximos séculos sim, nos próximos anos não. Esse é mais um tipo de coisa que inicialmente era uma especulação e está-se a transformar em afirmações que podem ser refutáveis ou confirmadas experimentalmente. A minha aposta é que vamos chegar a essa conclusão nos próximos 30 ou 40 anos. Vai sempre haver a possibilidade de haver uma outra maneira de ver as coisas ao fim de séculos, até pode haver uma mudança tão grande como a de Copérnico. Quanto ao Big Bang, a melhor maneira é detetar os fósseis que vieram dessa época. Portanto, vai haver maneira de se saber isso.
E as pessoas ainda estão interessadas nisso?
Mas alguma vez estiveram, em geral? Nunca vi ninguém.
Quando está a dar aulas, encontra alunos como você era - irreverente - e a fazer questões polémicas?
Sim, acho que a maior parte dos alunos são assim. E não é irreverência perguntar coisas descaradamente, faz parte de estar interessado.
Os alunos são melhores hoje?
Não faço a mínima ideia, nem vou comparar.
Usemos o cenário inglês.
Eu fui aluno em Portugal, onde a atitude era diferente. As pessoas liam menos e os alunos liam menos ciência. Estavam basicamente a tirar um curso. A grande diferença entre o sistema de ensino inglês e o português é em Portugal memorizar-se mais e em Inglaterra saber-se fazer coisas.
Falando em Portugal. Mantém algum interesse na vida política?
Mais ou menos.
Apercebeu-se de que Marcelo Rebelo de Sousa é o novo Presidente da República?
Sim, não vamos também exagerar.
E das alegadas sanções a Portugal?
Sim, claro que ouvi também. Estou informado, posso é não ter assim um interesse tão grande como isso.
Porque a questão portuguesa pouco interessa na União Europeia?
Interessa da mesma maneira que a grega ou a espanhola. O problema é a diferença entre Norte e Sul estar a agravar-se. Estive na Grécia e percebi como o país está completamente escaqueirado. Veem-se muitos poucos gregos nas ilhas a passar férias, é só estrangeiros cada vez mais, ou emigrantes gregos que voltam à terra. É pavorosa a ausência de jovens gregos a viajar. O que vai ser dessa geração que nasceu nestes momentos de crise dos países do Sul? É uma coisa potencialmente perigosa.
A questão do terrorismo para quem vive em Londres ou viaja muito é preocupante?
Acho que é o contrário, o facto de as pessoas não viajarem é que causa estes problemas de terrorismo, de xenofobia e de diferença entre uns e outros. O mais publicitado é o terrorismo, mas a reação xenófoba que as pessoas desenvolvem por causa do terrorismo é perigosíssima. Eu trabalho com iranianos e estive no Irão muito tempo, portanto acho que essa atitude é uma estupidez completa porque há ali gente que lutou contra a teocracia e situações de violação de direitos humanos. O terrorismo faz uma generalização e, de repente, os judeus são todos isto, os árabes todos aquilo, e as pessoas não percebem que há uma diferença humana individual. É como os americanos serem todos estúpidos, como é que se pode generalizar sobre isso? Claro que há uma quantidade gigantesca de americanos estúpidos, mas dizer em geral só é possível para quem não os conheça ou não tenha amigos americanos. O pior do terrorismo é o que pode acontecer com a radicalização dos dois lados e já o vimos no passado.
Quando olha para os seus alunos de outras partes do mundo não os vê com outra perspetiva?
Que disparate. É precisamente pelo facto de ter colaboradores iranianos que penso assim. Só mesmo uma pessoa que não tem contacto com pessoas de outras partes do mundo é que é capaz de pensar isso. É a mesma coisa que dizer que por causa da Inquisição os portugueses são todos terroristas. O perigo desta crise económica em relação à nova geração é que pode provocar uma realidade de as pessoas ficarem metidas nas suas ideias feitas e no seu cantinho, sendo o melhor da rua e a dizer disparates completos.
Quando vê a chanceler Angela Merkel defender a imigração fica satisfeito?
Isso é estar a perguntar uma coisa num contexto que não é. Não tem nada a ver com o terrorismo, só se for indiretamente por causa dos refugiados. Obviamente, há o problema de as pessoas que vêm desses países, alguns deles radicalizados e fundamentalistas. Agora, estar a dizer que eu tenho um aluno iraniano e que está ali um potencial terrorista é ridículo.
Escreveu o livro sobre o cientista Ettore Majorana, o Bifes Mal Passados. O que se segue?
Estou a escrever sobre os emigrantes! Os portugueses que estão fora, normalmente em países de língua inglesa e como trabalham uma língua que evoluiu e está entre o inglês e o português, aquilo a que chamo o emigrês. É uma língua e cultura fascinantes, porque fossilizou o lado mais tradicional de Portugal.
Ensaio ou ficção?
Neste momento, estou a escrever em formato ficção. Que é uma coisa que nunca fiz antes mas foi-me imposto a partir do momento em que o narrador fala emigrês. Portanto, tem de ser ficção. No fundo, sou um emigrante também, que é uma coisa de que as pessoas se esquecem, porque pensam que o emigrante é um gajo que é pedreiro e uma mulher que é cleaner, como eles dizem, mas na realidade somos todos emigrantes. Há uma geração de enfermeiras e de médicos que vieram viver para Inglaterra em resultado da crise portuguesa dos últimos anos, que é uma nova vaga de emigração muito diferente. Por exemplo, no Canadá há uma vaga de emigração açoriana que resultou do colapso da pesca da baleia; mais tarde, nos anos 90, há outras e agora esta recente, basicamente resultado do Sr. Passos Coelho ter achado que era boa ideia os portugueses emigrarem.
E é sobre esses que escreve?
É sobre todos, estas três gerações de emigrantes, mas acima de tudo sobre a língua que criaram e que incrivelmente está muito pouco estudada. Existem artigos, teses de doutoramento, mas está muito pouco documentada e por isso acho que é altura de se falar mais sobre isto. É uma cultura diferente que os portugueses não conhecem e é muito triste porque a maior parte da nossa população vive na diáspora, fora de Portugal, mas mantém uma cultura de certa maneira mais portuguesa do que a de Portugal. Fazem água-pé, a jeropiga, as coisas ligadas ao campo e à terra, que estão a desaparecer no próprio país.
Já avançou muito nesse livro?
Durante muito tempo não tinha a certeza se era capaz de escrever ficção, mas também como não é o lado da história mas o da linguagem e da cultura. O que os emigrantes fazem, como é o caso de haver touradas no Canadá. Que é uma coisa inacreditável, obviamente ilegal, mas como é um país tão grande é possível fazê-lo no meio de um descampado e ninguém saber. Acho fascinante conseguir transpor uma cultura completamente diferente e ninguém saber.
Surpreendeu-o o êxito dos Bifes Mal Passados em Portugal?
Um bocadinho! Não sei se fui incompreendido em Inglaterra, mas fui bem compreendido em Portugal. De certa maneira, até foi bem vindo porque o país estava a passar talvez uma fase pior nos sentimentos de inferioridade em relação à Europa "civilizada" do Norte. Foi, de certa forma, uma maneira de inverter a situação e usar um contraponto. O que é os Bifes? É usar o formato da narrativa de viagem vitoriana que tinha aquela superioridade toda implícita e explícita, e fazê-la ao contrário. Do português que vive em Inglaterra ou que vai visitar Inglaterra.
Dar uma de Lord Byron, mas à portuguesa!
Exatamente, acho que essa é uma maneira de pôr as coisas. E não é só o Lord Byron, há imensos casos. Lord Byron, obviamente, tem um passado de dizer mal de Portugal especificamente que é uma coisa terrível, mas, mesmo abstraindo--nos disso, o século XIX tem uma imensa literatura inglesa que é o bife a viajar pelo mundo com uma atitude completamente colonial; a ir à Índia e a dizer mal, sempre a mostrar superioridade e sobranceria. Portanto, fazia sentido inverter a coisa, porque são os alvos ideais para este tipo de atitude. Nem sei porque é que as pessoas não fizeram isso antes! O livro foi escrito de uma maneira que pode parecer um pouco ofensiva, mas o humor é que é o móbil. O humor, porque os bifes falavam assim no século XIX e agora, quando o Bifes Mal Passados saiu vivíamos um complexo de inferioridade terrível português e grego, bem como dos outros países do Sul, em relação aos países do Norte, ou com a Inglaterra e a Alemanha. Chegou a altura de as pessoas concluírem que é mentira que em Portugal sejamos preguiçosos e que não trabalhamos mais do que os outros. Basta ver as estatísticas de horas de trabalho e vê-se que os alemães trabalham muito menos. Se alguma coisa está mal em Portugal, não é nas pessoas que trabalham mas em quem está a organizar o trabalho - os políticos, os economistas, os empresários. Há um problema de produtividade, não há dúvida, mas não se deve à preguiça.
Pode dizer-se que quando se reformar vai-se dedicar definitivamente à escrita?
Não, primeiro não vou reformar-me, e, segundo, se me reformar não faria nada. O que gosto de fazer é ciência e escrita ao mesmo tempo, porque uma coisa equilibra a outra. Se fizesse ciência continuamente, daria em doido. Se escrevesse profissionalmente, também daria em doido e ficaria na penúria. Entre as duas coisas, do que gosto é da sua combinação. Ajuda-me ao equilíbrio mental escrever quando não estou a fazer ciência.