Pedra na Geni

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1- Vomitam ódio e raiva. Somos nós, os filhos da nação, filhos de mães sem nome. A pátria que os pariu. A mátria que lamenta, das senhoras que se arrependem do tanto trabalho que tiveram no momento do parto. Ou são corruptos ou são corrompidos. É tudo a mesma coisa. Vai tudo a eito. Farinha do mesmo saco. Os que se vendem, os que se prendem, os que se ofendem, os que se benzem.

Multidão contra os proscritos. É a história dos homens, da Idade da Pedra, dos tempos bíblicos, pedras contra eles - eles untados de vergonha, elas perdidas no pecado, marias madalenas, pedra na mão, sociedade atraiçoada, gente tramada, não, não vai tudo a eito. Joga pedra na Geni, só nela, a odiada, a prostituta, transexual, ainda pra mais. Nela é fácil de bater, é mais fácil ainda explicar porque se bate.

Há gente tramada e outra que trama. O banqueiro com um milhão, o bispo de olhos vermelhos, o político de joelhos. Nesta semana faliu mais um banco. Morreu, não de morte natural. Nem insólita era a doença, o diagnóstico pouco reservado: 40 mil milhões foi tudo quanto o sistema bancário fez evaporar nos últimos oito anos em Portugal.

"Sabe quanto vale 40 mil milhões de euros? Os banqueiros também não, pelo que tiveram de abatê-los nos seus balanços" - assim, desta forma deliciosa, começa um dos mais dramáticos textos que a imprensa portuguesa publicou nos últimos anos.

O processo de destruição de riqueza, um dos mais trágicos da nossa história, é dissecado tintim por tintim. Como numa autópsia, são expostas as razões do mal, a incúria, a incompetência, os esquemas em pirâmide. O texto é formidável, gostaria de o ter escrito, e Pedro Guerreiro e Isabel Vicente são os guias nesta visita ao campo de extermínio financeiro, relatam com realismo os horrores da mortandade e agarram a mão dos mais impressionáveis: "Imagine que o mundo não é feito só de pessoas boas e prepare-se para entrar no lado negro dos negócios."

A "limpeza" de balanços que a última revista do Expresso nos oferece não é apenas uma investigação extraordinária feita pelo bom jornalismo. É um requiem, uma missa fúnebre de cinco instituições bancárias nacionais na história de oito anos de escândalos no sistema financeiro português. E limpeza é o termo certo. Só se limpa o que é sujo.

2- Pois isto aconteceu debaixo dos nossos olhos, entre silêncios e perplexidades, numa complacência coletiva que a todos deveria envergonhar. E se não envergonha, pelo menos preocupa? Fizemos bem o nosso trabalho? Aprendemos alguma coisa? Agora que temos os banqueiros de joelhos e os políticos de olhos vermelhos, quem ficou com o milhão? Ou com os três mil milhões - que são as imparidades reveladas pelo colapso do Banif, o mais recente desta trágica história?

Reparem que este sistema financeiro que o Expresso revisita, este submundo de operações tenebrosas ali descrito, é o mesmo que andámos a elogiar e a enaltecer desde o milagre cavaquista. Se a alquimia alguma vez rimou com economia, o verso era escrito por um banqueiro e a prosa patrocinada pelo banco.

Jardim era o homem novo da era Cavaco, Santos Silva o melhor amigo de Guterres, Ricardo o dono disto tudo - e todos eram confidentes e aliados do primeiro-ministro, fosse ele quem fosse. Menos Santana Lopes, que era o Pedro enjeitado. Menos Passos Coelho, porque Pedro é pedra e, desta vez, ela não foi atirada a Geni. Foi Salgado o apedrejado. Já era ele a quem todos atiravam pedras, a começar pelos bajuladores que na véspera ainda lhe colocavam coroas.

Quarenta mil milhões de imparidades em oito anos, políticos, reguladores, jornalistas, estava tudo no mesmo barco. Até Pedro, que deixou o Banif apodrecer e um sistema financeiro inteiro, mas com mais buracos do que os queijos suíços.

Na hora da "limpeza", faltam três mil milhões de moedas de euro, mas sobra muita lata. Pergunto de novo: alguém se envergonha, preocupa a todos? Resposta: preocupa a tolos, mesmo os de nascença. Luís Campos Ferreira convoca a nação para uma reflexão sobre "o papel da comunicação social" no caso Banif, a propósito da notícia que a TVI divulgou no domingo à noite.

Cinco bancos fecharam portas antes do Banif. No caso mais estrondoso, andavam todos, incluindo jornalistas, a elogiar a liderança de Ricardo Salgado e a solidez do BES. Em nenhum momento foi dado o alerta. A exceção foi o BPN, que a revista Exame investigou e ninguém ligou. Estava tudo certo, portanto. Silêncio dos negligentes não incomoda. Indignação dos indigentes repugna.

Campos Ferreira não é apenas um dos muitos tolos que leem e acreditam em títulos de jornais que publicam fotos de mulheres nuas na primeira página. Além de ser colunista regular num sítio que está ao seu nível, esteve quatro anos e meio no governo que era dono do Banif, que ali tinha dois administradores por si nomeados e ainda premiou um deles promovendo-o a supervisor-mor do sistema bancário.

Este ex-secretário de Estado sabia que o Banif tinha acumulado prejuízos de 1500 milhões entre 2011 e 2014, sabia que a Comissão Europeia pedia o fecho do banco desde 2013, sabia que o banco "estava na rota da liquidação", como afirmou o atual ministro das Finanças e sugere que a TVI deveria agir como sempre se fez nos escândalos anteriores: buraco no chão, cabeça lá dentro, para depois gritar no buraco "o rei vai nu".

3- Sim, a TVI soube antes de todos que o Estado Português tinha uma semana para evitar a liquidação do Banif, que o banco iria ser intervencionado pelo Estado, que a integração na CGD era a solução preferida e que, se o novo modelo de resolução fosse aplicado já no dia 1 de janeiro, acionistas, obrigacionistas e grandes depositantes iriam sofrer perdas.

A notícia estava pronta a ser divulgada no domingo à noite. Que fazíamos? Escondíamos? Ignorávamos? Ficávamos calados? Ou só nos revoltávamos em fase de rescaldo? É preciso, sim, refletir sobre a comunicação social nestes casos. Como se refletiu noutros, mesmo naqueles que muito jeito davam ao doutor Campos Ferreira e ao partido a que pertence.

Até hoje, o engenheiro Guterres mal me fala, porque o Diário Económico denunciou a fraude contabilística, em que os milhares de milhões arrecadados em privatizações eram usados pelo Estado para maquilhar o défice. O então famoso caso Partest era um caso de traição à pátria para os socialistas. Os que agora fazem demagogia com a TVI e o Banif elogiavam o serviço à nação prestado pelo jornalismo independente.

O défice público e o buraco do sistema financeiro são obra de quem, nas últimas décadas, geriu finanças públicas e administrou bancos. O resto é a canção de Chico Buarque. Porque não chegaram ainda as Águas de Março, de Jobim: é pau, é pedra, mas não é o fim do caminho.

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