O silêncio mata como o terrorismo

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Imagino um jornalista português encarregado, no próximo dezembro, de fazer um almanaque de resumo noticioso para 2017: desembocado à semana passada, que destacaria ele como acontecimento mais relevante destes dias, qual seria a notícia digna de figurar, destacada para a posteridade, num balanço analítico e prospetivo, como mandam as regras do jornalismo inteligente?

O atentado terrorista em Londres, cometido por um homem que matou cinco pessoas munido de um automóvel e de uma faca?

As declarações sobre a mistura para a calaceirice: aguardente, mulheres e povos do Sul, uma receita preconceituosa do presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem?

A oficialização de um défice nas contas do Estado de 2016 inferior a 2,1%, o resultado que talvez (ainda talvez...) tire Portugal não só do procedimento por défice excessivo imposto pela União Europeia mas também do grupo dos países párias, segundo as mentes eurocratas?

O facto do "perdão fiscal" do governo, em 2016, ter sido aproveitado por grandes empresas lucrativas como a EDP, a Jerónimo Martins ou a Corticeira Amorim?

A escolha de Teresa Leal Coelho como candidata do PSD a presidente da Câmara de Lisboa e a declaração de Carlos Carreiras, o coordenador autárquico desse partido, a confessar ser-lhe "indiferente" as eleições lisboetas serem ganhas pela sua companheira de militância ou pela líder do CDS, Assunção Cristas?

A ameaça de fecho de 180 balcões da Caixa Geral de Depósitos, o banco público cujo novo líder, Paulo Macedo, anuncia aos quatro ventos não querer trabalhar nas cidades menos populosas, onde a banca privada desistiu de fazer negócio?

A venda de obrigações perpétuas daquele banco, a troco de um juro especulativo de quase 11%, o que obrigará a Caixa a pagar anualmente, mais ou menos, cem milhões de euros aos investidores?

A enésima ida do governador do Banco de Portugal ao Parlamento para se explicar, sem satisfazer ninguém, sobre o fim do BES?

A derrota de Donald Trump, incapaz de convencer o número suficiente de congressistas do seu próprio partido a votar um projeto de desmantelamento do Obamacare?

A nova lista dos mais ricos do mundo divulgada pela revista Forbes?...

São muitas, portanto, as hipóteses de escolha para o tal jornalista (português ou não) decidir qual foi o acontecimento mais relevante da semana passada.

Aposto, porém, que nenhuma dessas notícias será, daqui a 100 anos, lembrada pelos historiadores. Esses, à distância, ficarão abismados com um facto que ninguém destacou em primeira página, ninguém tratou em antena de telejornal durante mais de dois minutos, nenhum site trouxe ao topo da homepage mas que, lapidarmente, define o atual estado de evolução da humanidade: a fome em África atinge 20 milhões de pessoas.

É a maior crise humanitária do planeta desde a II Guerra Mundial. É um crime contra a humanidade cometido pela ação política e económica e, também, pela inação política e económica dos países mais poderosos e ricos do mundo. É um crime que não sabemos denunciar, mesmo com o secretário--geral da ONU, o português António Guterres, a ir há dias a um desse locais de morte ossuda, ressequida, nauseabunda, verdadeiramente terrorista: a Somália.

Daqui a cem anos um historiador, ao descrever o capitalismo globalizado do século XXI, irá sentenciá-lo com este número: 50 mortes à fome por dia, só em África, na época mais rica e produtiva de todo o percurso da humanidade... E nós, cegos pela efémera fumaça mediática, nem damos por isso!

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