Na minha discoteca há, talvez, três mil discos. Só lá está um álbum de David Bowie. Há dias tentei ouvir no Tidal uma playlist do criador da personagem Ziggy Stardust. Aguentei, só, 20 minutos..Reconheço a Bowie inovação na pop. Admiro-lhe a coragem, na vida e na arte. Saúdo o efeito da sua obra, ao ter ajudado a libertar alguma Europa de preconceitos sexuais. Dou desconto ao disparate que foi o momento infantil onde defendeu, em 1976, um governo fascista para a Grã-Bretanha. Mas só aprecio, lamento, quatro ou cinco canções....Escrever simplesmente "eu não gosto da música de David Bowie" no dia da morte do artista é uma blasfémia para a turba. Há, aliás, duas turbas: a multidão ululante da internet e a numerosa elite compenetrada da imprensa. A primeira, antes, não tinha importância. Mas a segunda, suicida, segue-lhe as marés ao minuto, interpretando-a, dando-lhe credibilidade, ao mesmo tempo que procura censurá-la. Resultado: as duas turbas estão iguais e ambas esmagam até à morte, em tempo real, o pensamento divergente..É a ditadura da mole, todos os dias mais dura..Ora acontece que, ao contrário do que foi dito pelas turbas, não achei ter Edgar Silva, candidato do PCP às presidenciais, hesitado na classificação do regime da Coreia do Norte como não democrático. Revi a entrevista da RTP na qual isso aconteceu e acho que Edgar não hesitou: ele explicou... Mas defender isso agora é, tal como criticar no dia de hoje o trabalho de Bowie, um sacrifício: as turbas, muito biblicamente, gritarão "crucifica-o, crucifica-o".....É verdade que o PCP foi muitas vezes dúbio sobre a Coreia do Norte, o que é lamentável. Basta ouvir os dirigentes norte-coreanos a defender o seu regime para perceber o essencial: falta de liberdade, culto da personalidade, poder dinástico e autoritarismo ditatorial. Não é democracia, não é comunismo..Acontece, porém, e nisso o PCP tem razão, que boa parte da informação acerca da Coreia do Norte ou é mentira ou é caricatura. The New York Times, BBC, Le Monde, a imprensa portuguesa deram como verdadeiras falsidades ridículas. De memória cito três, entre dezenas: todos os coreanos têm um corte de cabelo igual ao de Kim Jong-un; o tio do líder, condenado, foi lançado a uma matilha de cães; um ministro foi fuzilado com um míssil antiaéreo....Tratar os 24 milhões de norte-coreanos como idiotas e chorar a sua sorte é uma recorrente hipocrisia, esquizofrénica e racista. O resultado é este: a escalada atómica da Coreia do Norte é real mas as turbas preferem gozar com o país. Vejam-se as reações ao teste com a bomba H: do susto inicial à rápida desvalorização..Este estado de espírito da ditadura da mole serve, afinal, os interesses de quem?