Em representação do Diário de Notícias fui há quase três anos a um almoço na Gulbenkian onde encontrei à mesa o ex-presidente moçambicano Joaquim Chissano, o antigo primeiro-ministro angolano Lopo do Nascimento, o ensaísta Eduardo Lourenço, o poeta Hélder Macedo, o jornalista José Pedro Castanheira, o presidente da RTP Alberto da Ponte, o anfitrião Artur Santos Silva, entre uma dúzia de cabeças brilhantes. Mário Soares era uma delas..Nessa altura, o ex-Presidente da República, com 89 anos, escrevia no DN sucessivos artigos contra a globalização, contra a troika, contra a senhora Merkel, contra Passos Coelho, contra o capitalismo neoliberal, contra o FMI, contra o caminho da União Europeia, contra a austeridade "que mata" (sic)..Naquele almoço, Soares parecia um comunista a falar e apelava à revolta contra o governo. A respeitosa reverenciação aprovadora dos convivas quase prometia ver alguém levantar-se, erguer um copo e cantar a Internacional...mas só depois, claro, da sobremesa afrancesada ser servida por um criado de luva branca e contrato precário....No final, quando fui despedir--me, atirou-me uma frase que diz muito sobre como ele via o jornalismo: "Olhe, diga lá ao seu diretor que o Diário de Notícias tem de ficar do lado certo da História!".Qual é o Soares que homenageamos? O rebelde contra o capital ou o governante que em 1978 meteu o socialismo na gaveta? É possível, esquizofrenicamente, elogiarmos os dois?.Que pai da democracia celebramos? O paladino da liberdade política ou o fundador de um sistema partidário sem ideologia, um "arco de governação" clientelar, corrupto?.Que patriotismo relevamos? O que defendeu a arte e a língua portuguesas ou o que negociou a conquista do poder no sótão da embaixada norte-americana em Lisboa?.Que visão política aplaudimos? A que lutou contra o fascismo ou a que sabotou a reforma agrária? A que nos levou para a CEE ou a que se rebelou contra Bruxelas?.Que sentido de justiça admiramos? O que protegeu Spínola ou o que pressionou uma amnistia por Otelo, ambos manchados pelo sangue derramado com bombas detonadas por apoiantes?.Que carácter respeitamos? O que se solidarizou com José Sócrates, suspeito de corrupção, ou o que deixou cair o governador de Macau, Carlos Melancia, acusado num processo do qual sairia ilibado?.Ouvi algumas vezes Álvaro Cunhal repetir para definir Soares: "É um democrata, mas não se pode confiar na palavra dele.".O meu sogro, o escritor Álvaro Guerra, também fundador do PS, admirava-o profundamente mas não me esqueço da sua desilusão quando organizou, como embaixador, a primeira visita à Índia de um Chefe de Estado português, depois da perda de Goa, Damão e Diu. Simbolicamente preparou o palácio do último governador português para alojar o Presidente mas, ao chegar ao local, Soares irritou-se com o edifício velho, exigiu ficar num hotel de luxo e mandou o simbolismo às malvas!.Sim, todos conhecemos os méritos, os defeitos, os acertos e os erros de Mário Soares: fizeram parte das nossas vidas. Merece, então, tantas homenagens? Claro que sim, até porque ele, como um dos principais líderes da democracia, acompanhado por toda a geração política do 25 de Abril de 1974, da direita à esquerda, com todas as falhas que todos cometeram, acabaram por evitar uma guerra civil e deixaram-nos um país muito melhor do que aquele que encontraram. Obrigado, muito obrigado.