À boleia de Centeno

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Sendo impossível escolher um ator que tenha desempenhado o seu papel de forma sequer medíocre na novela CGD/Domingues/Centeno/Costa/etc., resta escolher o que se pode tirar como retrato de alguns problemas que persistem na nossa comunidade.

1. Marina Costa Lobo, neste jornal, chamava à atenção de que "as questões de transparência política tendem a ser menos valorizadas entre os eleitores do que os resultados económicos". É verdade. E até se podia ir mais longe, há vários casos - na gestão autárquica, por exemplo - em que os nossos concidadãos desconsideram condutas criminosas em função daquilo que consideram um bom desempenho político.

A convicção que tanta gente mostra - e que me parece real - de que as pessoas não estão preocupadas com as mentiras de um ministro ou que estão dispostas a tolerar mentiras em função de resultados económicos ou outros geraria o que Manuel Carvalho, no Público, chamou a "consagração da patranha".

Importa agora perceber como se chegou ao estado em que os cidadãos, aparentemente, não exigem que os políticos falem verdade ou, pelo menos, desvalorizam questões éticas.

Podíamos chegar à conclusão de que os políticos estão a reproduzir ou a manifestar o que as suas bases de apoio acreditam: não interessa, no caso concreto, se se mentiu, o importante serão os resultados, neste caso, económicos. No fundo, estariam a cumprir a sua função, a representar os valores de quem os elegeu.

A questão é que esse comportamento das pessoas foi induzido, e continua a ser, pelos próprios políticos e por quem faz parte do processo político.

O espetáculo que os partidos e os comentadores mais próximos desta ou daquela área política voltaram a dar explica, em boa parte, o comportamento dos cidadãos. Se vemos um dos lados exigir uma moral que não exige aos seus, transforma-a em algo de tão flexível que deixa de fazer sentido. Ou seja, afasta a verdade, neste caso, da equação política. Torna os eleitores reféns de uma situação que, em tese - ainda acredito que as pessoas preferem a verdade à mentira -, lhes desagrada. Daí até à descrença no sistema vai um passo de um anão.

Os líderes políticos de uma comunidade não podem ser reprodutores acéfalos de um conjunto de convicções conjunturais, têm de ser os promotores dos valores que a fundam. A democracia tem na sua base valores éticos inalienáveis, quando se relativizam põe-se em causa o edifício, que mais cedo ou mais tarde ruirá.

2. Todas as exigências de António Domingues foram aceites na convicção que se estava perante um verdadeiro profeta. Deu no que deu.

Nesta semana, ficou claro que Centeno só não sai do governo porque o Presidente e o primeiro-ministro pensam que sem ele seria o caos. Também vai dar mau resultado. A fragilidade política do ministro vai alastrar-se ao governo e, se as complicações são grandes neste momento, ainda vão tornar-se maiores.

A mania dos homens providenciais é um mal nacional que não apresenta melhoras.

3. O diploma que isentaria António Domingues de apresentar a sua declaração de rendimentos foi, como é do conhecimento público, elaborado num escritório de advogados. Não faltaram acusações sobre o suposto escândalo que seria a utilização de juristas de fora da órbita do Estado num assunto desta sensibilidade.

Passemos por cima do facto de que todos os governos de todos os partidos há muito tempo recorrerem a grandes escritórios para ajudarem na elaboração de leis e noutros tipos de serviços legais que costumavam ser realizados pelo Estado. Há uma boa razão para que isso aconteça: é que os grandes escritórios prestam esses serviços melhor do que o Estado.

Chegamos a esse ponto pelas piores razões. O discurso do emagrecimento do Estado teve uma consequência óbvia: afastaram--se os técnicos mais qualificados, no caso, juristas. Mas está longe de ser o único caso. Muito longe. O Estado tem perdido competências técnicas em quase todos os setores.

Enquanto é discutível que certas áreas permanecem na órbita do Estado, ou que tenham uma diminuição de tamanho, há zonas que pela sua importância não podem ser, digamos assim, concessionadas ao setor privado em nenhuma circunstância, um caso será o de legislar, mas devem estar aqui incluídas, entre outras, todas as matérias ligadas à soberania e à segurança.

O Estado manteve-se gordo onde devia emagrecer e emagreceu demasiado nos locais onde devia permanecer robusto.

4. Surpreendeu ver no caso da equipa de gestão de António Domingues tanto empenho em manter escondidos os rendimentos. Não porque eu não pense que o cidadão tem direito a isso, mas porque devia existir a noção nos gestores de que trabalhar para o Estado impõe um maior rigor de transparência. Mas não só. Convenhamos que alguém que vem de cargos importantes do setor bancário, face a todas as barbaridades que aconteceram, devia ter, no mínimo, a humildade de perceber que as pessoas têm todas as razões para desconfiar deles. Seria aliás normal exigir mais transparência a esses profissionais, é que temos todos pago muito por erros e crimes de muitos dos seus camaradas de profissão.

O facto é que o poder político deixa-se demasiadas vezes desrespeitar pelo poder económico. As exigências de Domingues e da sua equipa e a forma como Centeno a tudo disse sim é só mais um exemplo da admissão de subalternidade.

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