Eutanásia: não é preciso levantar o pano

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A bastonária da Ordem dos Enfermeiros fez disparar todos os alarmes e deu um mau contributo para a causa que defende, a da eutanásia, ao ter dito (e desdito) que era sugerida nos hospitais em casos extremos. É provável que lhe tenha escapado alguma verdade, mas é quase incompreensível que uma representante de um setor profissional com tanta responsabilidade não se tenha apercebido de que estava a abrir uma caixa de Pandora.

A prática é crime e punida com pena de prisão, o código deontológico dos médicos proíbe-a. O Ministério da Saúde só podia fazer o que fez, mandar averiguar o que se passa nos hospitais. A Ordem dos Médicos, como era de esperar, considerou as declarações "gravíssimas". O Parlamento quer ouvir Ana Rita Cavaco e a PGR abriu um inquérito.

São averiguações que muito provavelmente não darão em nada. O que acontece atrás do pano fica atrás do pano. Nem médicos, nem enfermeiros, nem familiares dos doentes vão querer falar sobre o assunto. Só quem já passou por um desespero destes é que sabe que se trata de um processo muito complexo. E de como os profissionais que lidam com o sofrimento são o último reduto desse desespero.

Mas o pior é ter começado a saltar da caixa quem relate de forma anónima à comunicação social casos que alegadamente se terão passado nos hospitais. Lança-se assim a desconfiança sobre todo o Serviço Nacional de Saúde no que diz respeito às práticas médicas, sem que se consiga provar nada.

É por isso que a bastonária não devia ter levantado esta ponta do véu num momento em que se recomeça a discutir um assunto tão sério, que divide profundamente a sociedade portuguesa. Ana Rita Cavaco só veio acicatar os ânimos dos que, por razões religiosas ou outras, rejeitam a eutanásia. E quase de certeza deixou menos confortáveis muitos médicos e enfermeiros que como ela se batem pela mesma causa.

Afinal, bastava-lhe ter argumentado, como fez, com o conhecimento de situações em que os cuidados paliativos, mesmo quando existem - e praticamente não existem, apesar dos governos se comprometerem com uma rede pública mais vasta -, não conseguem ser a resposta para todas as situações. Bastava isto para defender a sua posição de subscritora da petição "Direito a morrer com dignidade", lançada por um movimento cívico e que até ao momento foi assinada por sete mil pessoas.

Este é um tema que merece ser pensado e discutido. E não há piores nem melhores alturas para o fazer. Há muitas pessoas com doenças incuráveis a sofrer profundamente, e só isso exige que nos esforcemos por o tratar sem grande estardalhaço. O debate começou várias vezes, a última delas em 2009 pela mão de um ex-deputado do PS, Marcos Sá, que viveu em casa o drama de um familiar próximo. Passaram sete anos e voltámos ao início. Se andarmos apenas a espreitar para trás do pano vão passar mais sete e mais sete e mais sete.

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