Os alunos de uma escola básica do Alentejo andaram a ensaiar o hino do PCP para uma celebração dos 100 anos da revolução russa que deverá realizar-se na escola, hoje, segunda-feira em pleno horário letivo. O caso, que já recebeu críticas dos pais, pode não ser único. O presidente da associação de diretores admite situações pontuais. Segundo os pais de uma aluna - que denunciaram o caso -, os encarregados de educação não autorizaram a prática partidária. Questionado, o Ministério da Educação respondeu que "a participação de alunos em cerimónias partidárias - mesmo aquelas que eventualmente decorram em período escolar - é permitida e gerida no quadro de autonomia de cada escola". E acrescenta: "Obviamente, nenhuma criança ou jovem pode ser obrigada a participar nessas cerimónias, sendo obrigatório o consentimento expresso dos pais ou encarregados de educação.".A notícia saiu na sexta no Jornal de Notícias, e o parágrafo acima reproduz, palavra por palavra, o essencial - com uma diferença apenas: onde está "Alentejo", "hino do PCP", "100 anos da revolução russa" e "partidária" lê-se "Alfândega da Fé", "cânticos católicos", "missa pascal", e "religiosa". Esta diferença, no entanto, parece suficiente para que não haja escândalo nacional, interpelações parlamentares tonitruantes ou exigências de demissões. É que, dir-se-á, é "totalmente diferente" impingir, a alunos do básico, nas aulas de Educação Musical, cânticos religiosos ou cânticos partidários, e organizar, em horário letivo, uma celebração dos 100 anos da Revolução de Outubro ou uma missa pascal..Só que não há qualquer diferença. Se se vai alegar que a comunidade de Alfândega da Fé é, como o nome indica, "maioritariamente católica", e portanto decidir, na gestão da escola, transformá-la num estabelecimento de ensino sectário constitui uma decisão democrática, o mesmo se poderá dizer em relação a uma comunidade maioritariamente comunista. Ou PSD, PS, Benfica ou Futebol Clube do Porto. Ou, imaginando que havia áreas do país com predominância muçulmana, com certeza o ministério aceitaria também que as respetivas escolas pusessem os alunos a decorar o Corão - por que raio não?.Que aquilo que deve ser óbvio só se torne óbvio quando usamos exemplos de crenças ou ideologias que não são vistas pela maioria das pessoas, e nomeadamente pelas autoridades e representantes políticos, como algo "anódino", que "não tem mal", que "faz parte da cultura e identidade nacional", e, sobretudo, algo com que não se quer "arranjar sarilhos", diz muito sobre a forma como em Portugal se encaram os princípios fundamentais do Estado de direito democrático. Porque, na verdade, não é crível que o atual ministro da Educação não saiba que é inadmissível, à luz da separação constitucional entre Estado e religiões, assim como da definição da escola pública, que a direção de um estabelecimento de ensino estatal decida fazer proselitismo religioso, arregimentando os alunos para missas. Ou não estatuísse a Lei de Liberdade Religiosa que "o ensino público será não confessional." O que se passa é que o ministério não quer chatices com a Igreja Católica. Não quer passar por "jacobino" ou "ateu radical", ainda mais quando vem aí o Papa..[destaque:Autonomia escolar permite pôr crianças a recitar o Corão ou a comemorar a revolução russa em horário letivo, segundo o ministério].Uma iniciativa como a da escola de Alfândega da Fé (e que está longe de ser a primeira do género a ocorrer em escolas públicas) será sempre constitucional e legalmente inadmissível, com ou sem autorização dos pais, dentro ou fora do horário letivo. E decerto tal não passará a ser aceitável, como a resposta do Ministério da Educação incrivelmente pressupõe, se os alunos cujos encarregados de educação deduzem oposição tiverem "atividades alternativas". Será que o ministério de Tiago Brandão Rodrigues leu o que escreveu? "Atividades alternativas" à missa? Os meninos que não vão comungar e cantar do missal é que são "alternativos"? Ensandeceram, na 5 de Outubro?.Será que o ministro e os seus serviços desconhecem que só perguntar aos encarregados de educação se estão ou não de acordo com a participação das crianças na missa viola um direito fundamental? Leia-se o artigo 41.º da Constituição, número 3: "Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis.".A doutrinação escolar de crianças, que tanto nos causa repulsa quando descrita em regimes totalitários como o da Coreia do Norte, pelos vistos é aceitável desde que feita pela Igreja Católica - à qual 106 anos não chegaram para se conformar com não ser religião oficial. Mas, claro, os "radicais" e "odientos" são os que se insurgem contra a obscenidade de, no século XXI, ainda haver quem use o poder conferido pelo Estado democrático para converter menores e condicionar pais.