Este big brother não é um reality show

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O recente caso que opôs o FBI e a Apple sobre a encriptação do iPhone de um terrorista envolvido nos atentados de San Bernardino trouxe para o foco mediático o dilema entre dois valores civilizacionais que todos queremos conciliar: segurança coletiva e respeito pela privacidade individual.

Na verdade, este caso é uma pequena gota perante a imensidão de impasses filosóficos que o incremento tecnológico tem trazido. Há, a este respeito, um outro caso ainda mais paradigmático e estruturante: em 2014, um tribunal de Nova Iorque exigiu que a Microsoft cedesse informações sobre uma determinada conta de e-mail de um cidadão alvo de uma investigação criminal. Acontece que esta conta estava localizada num centro de dados daquela empresa em Dublin, na Irlanda. A Microsoft recusou esta intimação alegando que as autoridades americanas não teriam poder, independentemente do mandato judicial, para aceder a informações localizadas fora do seu território. Para este efeito, e tal como acontece no "mundo físico", o tribunal norte-americano deveria contactar os seus congéneres irlandeses e requerer colaboração no âmbito dos acordos internacionais firmados para este propósito. Ninguém está a imaginar polícias do FBI a realizar buscas, por exemplo, no edifício de uma empresa no centro de Dublin...

A questão é que os tribunais americanos não têm concordado com esta interpretação da Microsoft e o processo continua a correr à espera de uma decisão definitiva no Supremo Tribunal.

Está em causa muito mais do que um caso singular, no caso, de suspeita de tráfico de droga. Do que se trata é do respeito por regras elementares do direito internacional. De respeito pela soberania de um outro Estado. De uma perigosa ambição de controlo transfronteiriço. É por isso que este caso (NY Warrant Case) será um marco na relação entre Estados e, principalmente, de respeito pelos cidadãos nesta nova era tecnológica.

É sabido que o "petróleo" destes novos tempos reside no "big data", na quantidade quase incomensurável de dados que circulam digitalmente pela internet e se armazenam na cloud. O acesso a estes dados é apetecível nomeadamente por Estados que querem ter influência para além das suas próprias fronteiras. Prevê-se que, em 2020, a chamada internet of things represente mais de 30 mil milhões de dispositivos autónomos e cerca de 1,9 biliões de valor acrescentado à economia (IDC e Gartner).

Compete-nos a todos enquanto cidadãos enfrentar este impulso de poder que, naturalmente, seduz muitos atores políticos. O caso Snowden com a revelação de inaceitáveis práticas da agência de segurança dos EUA foi crucial para nos abrir os olhos... Acredito que este caso em que, apoiada por muitas outras empresas e organizações, a Microsoft enfrenta esta temerária tentação de alguns juízes americanos seja um marco na defesa da cidadania. É a nossa privacidade e, principalmente, a nossa liberdade que está em causa.

O que se exige é que os Estados, de forma transparente e à escala global, encontrem um ponto de equilíbrio. Um conjunto de regras claras que todos possamos seguir, que nos protejam e que sejam sufragadas democraticamente.

Diretor de legal affairs da Microsoft

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