1 O sofrimento das pessoas tem de ser compreendido e respeitado. Perante o sofrimento, os calvários todos do mundo, eu inclino-me, porque me comovo profundamente..Mas, depois, porque os crentes muitas vezes não foram informados sobre o verdadeiro Evangelho, notícia boa e felicitante da parte de Deus, concebem Deus à maneira de um tirano ou de um déspota, que precisa de sangue e submissão, fazem promessas e, concretamente em Fátima, vão pagá-las, de joelhos ou arrastando-se, sempre com aquela ideia de que talvez Deus se comova. Aqui, há uma pergunta simples: que pai ou mãe sadios, para darem pão e saúde aos filhos, precisam que eles se ajoelhem e se arrastem?.Fátima precisa, pois, de ser evangelizada. E a primeira evangelização é a evangelização de Deus, da imagem que fizemos dele. Jesus veio "evangelizar" Deus. Afinal, Deus é mesmo Pai e Mãe, e o seu único interesse consiste na alegria e na realização verdadeira e plena dos seus filhos. O único sacrifício que Deus quer é o que é exigido para lutar pela dignidade de todas as pessoas e pelos seus direitos..E Deus não precisa de promessas e que queimem toneladas de cera, tanto mais quanto Ele quer que a natureza que ele criou seja preservada. Que se faça, portanto, tão-só a promessa da conversão, da mudança de vida. Porque o mundo está ameaçador e perigoso e, se não houver mudança nas atitudes, se não houver diálogo, se o Deus da Vida continuar a ser substituído pelo deus-dinheiro, então, como diz o Papa Francisco, a terceira guerra mundial em curso, embora aos pedaços e episódios, pode tornar-se explosiva, com a ameaça até do nuclear. Esse é que pode ser o inferno que os pastorinhos dizem ter visto..O único sacrifício que vale a pena, isto é, que tem valor, é o que se faz para acabar com o sofrimento e os muitos calvários do mundo e para incentivar a justiça e o amor. Como disse o famoso bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, em diálogo com Óscar Lopes, depois de denunciar a religião das promessas, a religião utilitária, "o limiar diferencial da religião cristã começa quando alguém se debruça sobre o outro, quando alguém se volta para aquilo que o transcende, seja o outro neste mundo, seja o Outro absoluto (a relação ao Outro absoluto é exactamente também a relação ao irmão)". O então bispo do Porto era muito cauteloso em relação a Fátima e aos seus perigos de desvio da autêntica religião cristã, como, por exemplo, quando se fala dos manipulados "segredos", observando: "Abaixo de Fátima ainda há a magia." Um modo provocante de apelar à dignidade que deve existir na religião..2 Estou convicto de que se alguém viesse, por exemplo, da Índia e não tivesse nenhum conhecimento do cristianismo, ao assistir a certas celebrações em Fátima e noutros lugares em honra da Virgem ficaria com a ideia de que Maria é uma deusa. Causa realmente impressão o lugar tantas vezes central que é dado à figura de Nossa Senhora no catolicismo. Como se explica esse marianismo, que pode desembocar numa quase mariolatria? Isso dá-se de modo muito impressivo concretamente em Portugal, mas não só. Essa realidade tem uma expressão significativa nas manifestações de Nossa Senhora em muitas partes do mundo: só entre 1928 e 1975 contaram-se mais de 300 visões e o Dicionário das Aparições da Virgem, de R. Laurentin, de 2010, dá conta de 2567 encontros de videntes com Maria..Julgo que esses excessos encontram até certo ponto alguma explicação no patriarcalismo e na ausência do feminino no catolicismo. Assim, quando se fala de Deus, é no masculino: Deus é Deus, no masculino; as três Pessoas da Santíssima Trindade dizem-se no masculino: Pai, Filho, Espírito Santo. A hierarquia é masculina: o papa, os bispos, os padres, os diáconos, os sacerdotes - as mulheres têm funções subalternas. A própria socialização religiosa dá-se no masculino: mesmo uma menina será baptizada por um homem (padre, diácono ou bispo), já jovem ou mulher confessar-se-á a um sacerdote, que verá também na presidência das celebrações. Mas a situação agrava-se quando se olha para a cultura tradicional, concretamente, portuguesa. A figura do pai representa a ordem e a lei. Muitas vezes se ouviu a mãe a dizer aos filhos, no caso de desobediência ou transgressão: "Eu vou dizer ao vosso pai!..." A transferência dessa imagem temerosa do pai terreno para Deus enquanto Pai criou timidez face à figura de Deus, que a figura materna de Maria vem compensar, a ponto de ser posta a dizer heresias como esta: "Eu seguro a mão do meu Filho Jesus para não descarregar o castigo sobre o mundo e destruir a humanidade" e a pôr os cristãos a invocá-la contra Deus e o medo que Deus provoca..As pessoas recorrem a Maria como a Mãe, aquela que tem compreensão e traz ternura e se compadece. Pertence a Frei Bento Domingues a definição inultrapassável de Fátima: "É o cais de todas as lágrimas dos portugueses." Pergunto frequentemente: o que seria a Igreja em Portugal sem Fátima? E a política, em tempos de crise, sem essa almofada, esse colo aconchegante? Não foi a Fátima que as mães foram desabafar durante a Guerra Colonial? Não é lá que os portugueses vão desabafar em tempos de crise? Mas este é um fenómeno do catolicismo universal, como mostrou a National Geographic, na sua edição americana de Dezembro de 2015, com uma bela imagem de Maria na capa e o título: "Mary, The Most Powerful Woman In The World"..3 Mas, segundo o Evangelho, Maria é quem é porque é a primeira cristã. Acreditou no Filho e no seu Evangelho. Como se lê no Magnificat, o belo hino que São Lucas põe na sua boca: "O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas. A sua misericórdia estende-se de geração em geração. Dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias.".[artigo:7207217].[artigo:6250662].Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico