O Presidente da República despediu-se ontem dos portugueses. Ou melhor, Cavaco Silva dirigiu-se pela última vez ao país numa mensagem de ano novo. Longe do tom crispado de outros tempos não muito longínquos, distanciado dos apelos e das promessas de cooperação estratégica e institucional que pontuaram outras comunicações presidenciais, este momento simbólico marca o fim de 20 anos de cavaquismo e da vida política e institucional de Cavaco Silva. Sem disfarçar o azedume com a solução de governo que deixa ao país, o Presidente acabou por ser coerente com a última fase do seu consulado. Adotou como sua a narrativa de PSD e CDS quando sublinhou os "tempos de incerteza" e a necessidade de defender o atual modelo político, económico e social - como se alguém detentor de poder executivo estivesse hoje a ameaçar o regime consolidado -, dando razão aos que o acusam de tomar partido em vez de ser árbitro ou moderador. Fez o balanço, necessariamente superficial, destes dez anos de presidência e não deixou de apontar como prioridades o combate à pobreza, à exclusão e às desigualdades sociais. Cavaco Silva tem razão no primado que estabelece mas esquece-se de fazer um pequeno ato de contrição. Foi este Presidente que, em pleno estertor do socratismo, apelou ao sobressalto cívico argumentando que "há limites para os sacrifícios que podem ser pedidos aos cidadãos". Curiosamente, foi este mesmo Presidente que, através do silêncio, tolerou o ataque devastador à classe média a quem foi imposta uma austeridade sem precedentes com o respaldo de Cavaco Silva. Por fim, quis mostrar e demonstrar que conhece bem o país real. É facto que o percorreu várias vezes de lés a lés. Mas isso não lhe deu abertura de espírito para interpretar aquilo que são as angústias e os sentimentos maioritários dos cidadãos. Da história não figurará esta derradeira mensagem de ano novo. Apenas a imagem de um Presidente da República que, até ao fim, se manteve fiel a si próprio como alguém que, há muito tempo, desistiu de ser representante de todos os portugueses.