Opinião
08 julho 2022 às 17h09

Shinzo Abe (1954-2022). O falcão sorridente

Sebastião Bugalho

O assassinato de Shinzo Abe, esta manhã, enquanto discursava num comício partidário, é um dos maiores momentos de tragédia política deste século XXI.

Pela distância geográfica, pela falta de familiaridade ao cidadão português, o evento poderá parecer de importância relativa. O facto é que não o é. De todo que não o é. Desde que Yitzhak Rabin foi fatalmente baleado em novembro de 1995 que um líder (ou ex-líder) ocidental não perdia a vida de forma violenta. Passaram quase três décadas, sem dúvida repletas de desastre, ruturas e que mais, mas a morte de um político num país livre, às mãos de um compatriota, reúne traços de barbárie que os tempos de hoje pareciam ter esquecido.

Hoje, o Japão assistiu em direto ao regresso dessa aflição.

Marcante e nunca unânime, Abe governou durante oito anos seguidos (2012-2020), tendo uma passagem mais fugaz pelo cargo em 2006. Foi o primeiro-ministro mais definidor do Japão pós-Segunda Guerra e, mais do que isso, o homem que preparou o país para o mundo deste século ‒ este mundo, flagrantemente exposto desde que a Vladimir Putin invadiu a Ucrânia, mas já a brotar antes disso.

É Abe, antes de todos e apesar de todos, que procura na geoeconomia uma arma de defesa contra potências revisionistas, como a Rússia e a China. Se não resultou por inteiro com a primeira, manteve a segunda em sentido. É Abe, em iniciativas multilaterais viradas para a segurança (com a Índia e Austrália, em concreto) que tenta conter os impulsos expansionistas de Putin e Xi Jinping. É Abe, quando a América vira a atenção da sua política externa para a Ásia, que constrói uma arquitetura de diálogo a postos para uma nova era no indo-pacífico. E é Abe, tanto quanto isso e para isso, que orquestrou profundas mudanças institucionais na democracia japonesa que afetarão não apenas o futuro do país, como o da sua região. Alterando a Constituição japonesa, devolvendo ao país o direito à autodefesa e a compromissos de reciprocidade militar com os seus aliados, criando um Conselho de Segurança Nacional e um conceito estratégico próprio, Shinzo Abe trouxe o Japão para o diálogo entre pares na arena internacional, com a inevitável sombra do imperialismo nipónico ainda presente na consciência do seu arquipélago.

Dentro de casa, foi a direita do seu partido e do seu país. Conservador e cético quanto a atos de contrição sobre os crimes de guerra de Hirohito, manteve-se frequentemente em contramão face a gerações mais abertas e liberais, ávidas de maior igualdade entre homens e mulheres e novos direitos laborais. A sua política expansionista na economia ‒ a cognominada abenomics ‒ evitou a deflação e criou emprego real, mas não se traduziu em crescimento económico sustentado. A sua herança para dentro, uma estabilidade muitas vezes inerte, é essa. E o seu assassinato carrega riscos de reação social atribulada. Era um homem de poder, que nunca abdicou de o exercer, e o vazio que deixa será motor de certa incerteza.

O seu legado para fora, mais do que uma cara recorrente nas cimeiras internacionais, foi o de um falcão sorridente ‒ securitário, ainda que dialogante. O posicionamento da União Europeia em relação à China de Xi ‒ considerando Pequim, pela primeira vez, um "rival sistémico" em 2019 ‒ foi moldado no tempo muito graças à pressão de Abe, que fez por consciencializar os líderes europeus dos riscos da ambição chinesa.

No imaginário das sociedades livres, é, irremediavelmente, o primeiro líder mundial a sofrer um assassinato no século XXI.

Tinha 67 anos.