Faltava pouco mais de uma hora para o fecho das urnas em Itália, às 23.00 (22.00 em Lisboa), quando fontes do gabinete do primeiro-ministro informaram os media de que Matteo Renzi ia falar à meia-noite. Para muitos, era um sinal claro de que as sondagens à boca das urnas iriam ser desfavoráveis ao chefe de governo e que a ameaça de demitir-se feita durante a campanha ia ser cumprida quando ainda estivessem a ser contados os votos. Os números das sondagens comprovaram-no e a realidade podia ainda ser pior: com 90% das urnas de voto contadas o não ia nos 59,7%.."Vamos embora sem remorsos. A experiência do meu governo termina aqui", afirmou Matteo Renzi numa intervenção ao povo italiano a partir do Palácio Chigi.."Digo aos amigos do Sim que fui eu que perdi eu e não vocês. Assumo toda a responsabilidade", afirmou o primeiro-ministro italiano, antes de acrescentar que, no entanto, "quem luta por uma ideia nunca perde". Recordando que Itália "é o país mais belo do mundo. Esta é a bandeira mais bela do mundo", pediu para limparem as lágrimas porque no futuro hão de vencer..Antes de agradecer à mulher, Agnese e aos filhos, Renzi lembrou ainda que "podemos perder mas não podemos perder o sentido de humor"..O primeiro-ministro demissionário disse ainda que entregará a demissão segunda-feira à tarde ao presidente Sergio Mattarella. Na política ninguém perde, mas eu sou diferente. Perdi e digo-o em voz alta, ainda com um nó na garganta. Não sou um robô, sou um humano", afirmou, emocionado..Renzi deixou ainda um abraço e um beijo ao seu sucessor. "Nos mil dias e mil noites que passei neste palácio, vi a oportunidade de mudar para uma democracia mais direta. Mas essa não foi a vontade do povo italiano", disse ainda Renzi, afirmando "continuar a acreditar na Itália"..Com 99% das assembleias de voto contadas, o Não estava à frente com 59,7% dos votos, contra 40,3% para o Sim, determinando que a reforma constitucional defendida pelo primeiro-ministro Renzi não avança.."Aos amigos do Sim", o primeiro-ministro quis deixar um "abraço forte". Renzi lamentou que não tenham conseguido levar aos italianos esta oportunidade de mudança..No poder desde fevereiro de 2014, Renzi, de 41 anos, prometera demitir-se em caso de vitória do Não, tendo depois recuado, reconhecendo que era um erro personalizar um escrutínio que aos poucos acabou, no entanto, por se transformar num plebiscito à sua governação..Reforma constitucional.Com esta reforma, o primeiro-ministro esperava reduzir os poderes do Senado (atualmente o sistema italiano é um bicameralismo perfeito, no qual senadores e deputados têm a mesma força), além de acabar com a sobreposição de poderes a nível regional. Mas, para muitos eleitores, transformou-se num plebiscito ao governo de Renzi, especialmente depois de o próprio dizer que se demitiria em caso de derrota. Toda a oposição (e alguns membros do próprio partido) estava contra a reforma..A demissão de Renzi e a incerteza política que esta supõe é o pior cenário para a Europa, que além do contágio económico teme que a eventual realização de novas eleições possa significar a vitória dos populismos em Itália - não só o Movimento 5 Estrelas do ex-humorista Beppe Grillo (que defende um referendo para a saída do euro), mas também a Liga Norte (anti-imigração e antieuropeu). "Os italianos repudiaram a UE e Renzi. É preciso escutar esta sede de liberdade das nações", escreveu a líder da Frente Nacional francesa, Marine Le Pen..[twitter:805546765265018882].A economia italiana parece parada há 20 anos, com o desemprego nos 11,6 % (36,4% entre os jovens) e uma dívida pública de 2,2 biliões de euros (132,7% do PIB), só menor que a grega. As previsões de crescimento para 2016, da OCDE, são de apenas 0,8%. Apesar de o ministro da Economia italiano, Pier Carlo Padoan, afastar qualquer hipótese de "terramoto financeiro" depois do referendo, a verdade é que a taxa de juro da dívida subiram nas últimas semanas e existe uma preocupação crescente em relação aos créditos de cobrança duvidosa, que ensombram a banca italiana..Elevada participação.Na campanha, Renzi mostrou-se convencido de que com uma participação acima dos 60% teria garantida a vitória e, desde os primeiros dados, esse valor apresentava-se como favorável ao primeiro-ministro. Ao meio-dia (11.00 em Lisboa) esta era já de 21%, mais dez pontos percentuais do que no referendo constitucional de 2006 (no qual venceu o não). E às 19.00 ultrapassava os 57%, muito acima dos 42% registados nas eleições europeias de 2014, nas quais o Partido Democrático de Renzi conseguiu o melhor resultado de qualquer formação a nível nacional desde as eleições de 1958. No final, ficaria nos 69,11%..O primeiro-ministro também apostava numa menor participação no Sul, onde alegadamente existe maior resistência à mudança, e os números apontavam nesse sentido. A participação nessa região era de 47,2% às 19.00, mas o problema é que era muito mais elevada a norte (62,8%), onde se concentram muitos eleitores da Liga Norte (extrema-direita) e da Forza Itália, do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi. No centro, a participação era de 58,6%..A votação, que começou às 07.00 locais e só acabou às 23.00 (menos uma hora em Lisboa), não decorreu sem problemas. Nas redes sociais, alguns eleitores queixaram-se de que o lápis com que votaram podia ser apagado dos boletins, com o Ministério do Interior italiano a responder que os 130 mil lápis distribuídos pelas assembleias de voto eram indeléveis..Mais insólita foi a polémica em torno do voto do primeiro-ministro. Os eleitores têm de mostrar uma identificação válida e Renzi esqueceu-se da sua. Contudo, foi autorizado a votar. "Eu não tenho documento, mas espero ser reconhecido", disse ao votar em Pontassieve, na província de Florença. O chefe de governo votou ao lado da mulher e dos três filhos.