Quando a superestrela dos estudos de genética populacional David Reich, da Universidade de Harvard, publicou em março de 2015 um artigo científico revelando uma migração massiva dos povos das estepes (hoje território da Ucrânia) para a Europa Ocidental, há 4800, 4500 anos, que foi decisivo para moldar a herança genética da população europeia, a comunidade científica entusiasmou-se..Recorrendo às novas tecnologias genéticas que há seis ou sete anos revolucionaram completamente os estudos de ADN antigo, tornando acessível a leitura do genoma completo de alguém que viveu há milhares de anos, a equipa do famoso geneticista americano desvendou um pedaço fundamental da pré-história europeia..Com esse trabalho, Reich trouxe à luz do dia a vaga migratória dos yamnaya que, oriundos das estepes do leste, chegaram aos milhares a estas paragens, até às Ilhas Britânicas e ao norte da Europa, e por aí se instalaram, há cerca de 4500 anos. Literalmente: essa migração ficou impressa no ADN dos seus descendentes imediatos - a equipa estudou amostras da época - e perdurou por sucessivas gerações. E o que ela mostra é que essa vaga de fundo foi quase exclusivamente protagonizada por homens. Está lá escrito, nos genes dos seus descendentes..Hoje sabe-se que os antepassados dos europeus foram moldados por três grandes migrações pré-históricas, pelo menos. A primeira, há cerca de 37 mil anos, aconteceu com a chegada do leste de um grupo alargado de caçadores recoletores. A segunda, ocorreu há nove mil anos e trouxe para o Ocidente os primeiros agricultores, oriundos da Anatólia, que chegaram com as suas famílias e por cá se instalaram..A terceira, mais recente, e talvez mais intrigante, foi esta dos povos das estepes, que chegaram com os seus cavalos domesticados, as suas novas tecnologias e as suas línguas - é nesta altura que se dá a expansão das línguas indo-europeias e essa foi uma novidades do estudo de David Reich..Nesse trabalho de 2015 os seus resultados sugeriam, no entanto, que essa invasão yamnaya não teria tido uma expressão tão forte na Península Ibérica, em comparação, por exemplo, com as Ilhas Britânicas. É certo que as amostras da península não eram numerosas, mas seria isso suficiente para explicar a disparidade?.Isto perguntou-se Rui Martiniano, que na altura estava fazer o doutoramento no Trinity College de Dublin, na Irlanda, justamente nesta área da genética. Com contactos na Universidade de Coimbra, onde tinha feito anteriormente a licenciatura em Antropologia Genética, o jovem investigador português lembrou-se de ir atrás daquele mistério.."Os colegas de Coimbra que estavam a estudar vários locais de enterramento daquela época da transição para a Idade do Bronze em Portugal foram espetaculares, cederam as amostras e avançámos para o estudo", conta ao DN Rui Martiniano, hoje investigador no Wellcome Trust Sanger Institute, em Cambridge, no Reino Unido..Foram recolhidas amostras - pequenos fragmentos de um osso de crânio, que é o ideal para estes estudos - de um total de 14 esqueletos das épocas do Neolítico Médio e final, na transição para a Idade do Bronze, com idades sensivelmente entre 5300 e 4200 anos, de diferentes locais de Portugal..Lugar do Canto, Cova da Moura, Cabeço da Arruda e Dólmen de Ansião, na região de Lisboa e Vale do Tejo; Monte do Gato e Torre Velha, no Alentejo, e Monte de Canelas, no Algarve, são alguns desses sítios. No seu laboratório, na Irlanda, Rui Martiniano sequenciou os genomas completos dos 14 indivíduos..Mais sucesso reprodutivo."A equipa de David Reich demonstrou em 2015 que no resto da Europa Ocidental a vaga migratória dos yamnaya ficou profundamente marcada em todo o genoma dos europeus da época", explica o investigador português. Já na Península Ibérica, e concretamente em Portugal, como a sua própria investigação acabaria mais tarde por mostrar, essa marca é mais atenuada.."Não vemos esse impacto dos povos das estepes de forma tão clara, tal como acontece no resto da Europa, quando consideramos a totalidade do genoma", explica Rui Martiniano. O estudo, que envolveu investigadores das universidades de Coimbra e de Lisboa, além de Rui Martiniano, do Trinity College de Dublin, foi publicado em julho do ano passado na revista científica PLOS Genetics..Mas a história não acaba aqui. Olhando para um cromossoma muito particular, o Y, que só a população masculina tem, aí sim, a equipa de Rui Martiniano encontrou o traço claro dos yamnaya.."Está lá impressa claramente a linhagem característica das populações das estepes. O que observámos foi uma substituição completa das linhagens anteriores no cromossoma Y, o que indica que esses homens do leste tiveram mais sucesso reprodutivo do que os homens do Neolítico que já cá estavam." Ir além desta interpretação, no entanto, "é difícil", reconhece o investigador..Foi exatamente por aquela época, a partir da Idade do Bronze, que se iniciou a prática dos enterramentos mais individualizados, um hábito que pode até ter sido trazido pelos yamnaya. "É possível que as suas inovações tecnológicas lhes tenham dado vantagem e que isso se tenha refletido no seu sucesso reprodutivo", sugere o investigador..É uma possibilidade. Haverá outras, mas só prosseguindo os estudos se poderá avançar a partir daqui rumo a esse passado humano longínquo que a genética está a ajudar a desvendar.."Estamos a viver uma época dourada nos estudos com ADN antigo", garante Rui Martiniano. "O surgimento no início desta década da nova tecnologia de sequenciação de ADN antigo [designada next generation sequencing, em inglês] foi uma revolução, porque passou a permitir sequenciar genomas inteiros com base apenas em pequenas amostras de osso.".Numa comparação simples, antes desta nova técnica estar disponível, "conseguia-se apenas decifrar uma escassa centena de letras do texto genético, equivalente a uma pequena frase. Agora estamos a produzir livros, é uma boa altura para trabalhar nesta área", resume o investigador..Os homens que vieram a cavalo.Depois deste trabalho, Rui Martiniano e a sua equipa publicaram já neste ano, em maio, desta vez na Science, um novo estudo sobre estas migrações antigas da transição para Idade do Bronze. Mas o foco foram as viagens na direção da Ásia, mostrando que os povos das estepes que se puseram a caminho do leste por aquela mesma altura, levando consigo os primeiros cavalos domesticados - como fizeram nesta direção também -, eram já uma população geneticamente divergente dos yamnaya..David Reich aprofundou, entretanto, o seu estudo para a Península Ibérica, onde recolheu amostras de 153 esqueletos daquela mesma altura da transição para a Idade do Bronze, de Espanha e de Portugal..Esse novo trabalho ainda não foi publicado, mas em setembro o investigador de Harvard apresentou numa conferência da revista britânica New Scientist alguns dados preliminares que vão na mesma linha do que descobriu a equipa de Rui Martiniano..Na conferência, David Reich afirmou que as populações da Península Ibérica da Idade do Bronze "tinham nos seus genomas cerca de 40% da informação genética proveniente dos povos das estepes, enquanto no cromossoma Y ela era 100% dessa proveniência". Ou seja, "houve um impacto genético rápido e generalizado", o que significa "que esses homens que chegaram tiveram um acesso preferencial às mulheres locais". Mais pormenores, o cientista não quis adiantar, visto que o trabalho ainda está para publicação. Teremos de esperar.