Um português na Antártida
A primeira coisa é o frio. Fica frio a valer. Depois, de repente, surge o primeiro icebergue: um pequeno pedaço de gelo, a boiar. Seguem-se outros, cada vez maiores - alguns com vários quilómetros de comprimento, e o navio passa de largo. E chega o dia em que um albatroz solitário cruza o céu, num voo elegante. É o primeiro sinal de terra. As ilhas Bird, da Antártida, com as suas colónias de pinguins, focas, lobos-marinhos, albatrozes... já estão próximas. Um mundo gelado a fervilhar de vida.
É assim a chegada: uma emoção. E, estar lá, uma novidade constante, por mais que se retorne, como tem feito o investigador português da Universidade de Coimbra José Xavier, desde há duas décadas, para estudar as comunidades animais e o impacto das alterações climáticas na sua ecologia.
Vinte anos e nove expedições (muitas de oito meses consecutivos), a influência das alterações climáticas no delicado equilíbrio daquele local remoto e tão especial - "mágico", diz José Xavier - é para ele e para o resto da comunidade científica uma certeza, evidente nos muitos pequenos sinais. O aumento da temperatura média do ar e do oceano, o ritmo crescente do degelo na península e nas ilhas antárticas, as alterações na distribuição de espécies, a redução progressiva, e a acelerar, do permafrost (o solo gelado), este o resultado de estudos liderados, desde 2000, por outro português, Gonçalo Vieira, da Universidade de Lisboa.
Esta transformação, que está a acontecer em direto, perante os olhos dos cientistas, levou nove de entre eles, incluindo José Xavier, especialistas em diferentes áreas, a lançar há duas semanas um alerta na revista Nature. Assim, sem rodeios: resta-nos uma estreita janela de dez anos para salvar a Antártida... e o resto do planeta.
Os investigadores mostram, com dois cenários climáticos plausíveis, que se as emissões de gases com efeito de estufa se mantiverem como até agora durante a próxima década, haverá grandes alterações na Antártida no próximo meio século, "que a partir de certo ponto se tornam irreversíveis", com a aceleração do degelo, e que vão repercutir-se "por todo o planeta", explica José Xavier. Há uma escolha pela frente, e o tempo corre.
O som, o silêncio e o ciclo da vida
"A primeira vez é isso mesmo, mas a cada regresso, há sempre coisas novas", confessa, com um sorriso, o investigador da Universidade de Coimbra que, desde o ano passado, é ali também professor auxiliar, no departamento de Ciências da Vida, onde já criou uma equipa de quase uma dezena de jovens cientistas polares.
Da última vez que José Xavier esteve no remoto continente austral, no ano passado, uma das novidades foi esta: conseguiu ver pela primeira vez ao vivo uma espécie de lula que até agora só conhecia pelos dentes, que é aquilo que fica depois de as aves que se alimentam delas terem comido o resto.
Esses dentes impossíveis de digerir pelos robustos estômagos das aves antárticas têm servido desde o início ao cientista português e à sua equipa nacional e internacional para estudar a ecologia de várias espécies de aves e perceber a sua evolução de acordo com a disponibilidade do alimento. Neste caso, as lulas, base da alimentação das aves locais. José Xavier tem estudado a evolução desse delicado equilíbrio para avaliar o que pode estar em causa no mundo mais quente que aí vem.
"Levei 20 anos para ver a lula inteira", conta divertido. "Usámos uma nova técnica para apanhar lulas maiores, e conseguimos, mas isto também significa que estas espécies ainda estão muito pouco estudadas e que há muito mais para conhecer." Por isso, cada expedição - a palavra, com todo o peso de viagem a um mundo quase intocado, ainda é essa - é única e sempre recheada de coisas novas.
Foi em 1999, com apenas 23 anos, que José Xavier rumou pela primeira vez à Antártida. Tinha concluído a licenciatura em Biologia Marinha no ano anterior, na Universidade do Algarve, já a trabalhar como investigador na British Antarctic Survey (BAS), em Cambridge, no Reino Unido, e acabou por ficar mais um ano, a convite do instituto. Depois "aconteceu tudo naturalmente", como ele diz. Uma bolsa de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e a colaboração da BAS, que ainda hoje se mantém, foram o passaporte para essa primeira expedição. "Aqueles oito meses voaram", lembra. Era a ciência, sim, o trabalho intensivo no campo e o novo conhecimento. Mas também o silêncio mágico do lugar, o ciclo da vida a revelar-se na mudança do verão para o inverno, os animais sem medo dos humanos, o esplendor do dia e da quase noite, a rotina na base, com os turnos da cozinha e da limpeza, e a camaradagem com os quatro ou cinco companheiros, todos dependentes uns dos outros nos pormenores do dia-a-dia. O hospital mais próximo fica a mais de mil quilómetros e não há transporte para lá. "Ficamos pessoas melhores", resume José Xavier com simplicidade. Como não voltar?