"Não gosto de julgar as personagens"

Entrevista a José Luis Guerin, realizador de "A Academia das Musas".
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O seu filme A Academia das Musas, com o professor e as alunas a falar continuamente sobre o amor e as suas configurações literárias, pode suscitar o velho preconceito segundo o qual nada acontece porque são "apenas" pessoas a falar... Que resposta daria a uma visão desse género

Seria uma resposta muito respeitadora. Na minha perspetiva, é um filme com muito movimento em que acontecem muitas coisas. Teoricamente, não falam senão de literatura, sonetos, livros, como quem organiza uma biblioteca. Creio que qualquer espetador pode constatar que é outra coisa que está em jogo: são relações de poder, seduções, ciúmes, instrumentalizações - coisas que, em última análise, dizem respeito a todos nós. Na montagem, estive muito atento para que fosse possível seguir o movimento do próprio pensamento.

Como criador do filme, identifica-se com alguma personagem?

Não, nenhuma me representa, ainda que goste de todas e atenda às razões de todas. Não sou um cineasta moralista que goste de julgar ou condenar as personagens - gosto de as descobrir, acompanhá-las, problematizar discursos e palavras, deixando sempre que o espetador faça o seu próprio juízo.

Passa pelo filme a ideia de que o amor é uma "invenção literária". Trata-se de uma ideia enraizada nas nossas sociedades?

Será um paradoxo, porque a palavra está muito desvalorizada - fala-se muito mal. Mas é um facto que no amor há uma parte, pelo menos, que envolve uma construção algo literária, de maneira bem diferente do que acontece nas redes das novas tecnologias.

Mas a própria Internet, como a certa altura alguém sugere no filme, também existe como uma construção literária.

Assim é. As personagens dizem muitas coisas, por vezes lúcidas, outras disparatadas - e é interessante descobrir as contradições entre o que dizem e o que sentem. Por exemplo, a mulher do professor surge como uma pessoa muito lúcida para depois revelar uma faceta de mãe castradora. É ela que diz que o amor é a pior invenção dos poetas para enganar as mulheres. O que não impede que, no final do filme, para além das experiências pedagógicas, seja a única que, honestamente, acredita no amor.

Como se, ao longo dos séculos, o amor tivesse sido uma invenção dos homens, não das mulheres - e, por vezes, dos homens contra as mulheres. Será isso?

Para lá do amor em si, há uma instrumentalização do amor que dificilmente escapa às relações de poder. Nas relações entre as pessoas há sempre formas de poder. Por vezes, é grosseiro o modo como as pessoas se referem ao poder como coisa abstrata, como se fosse algo que incumbe apenas a algumas elites. Ora, todos exercemos algum poder na maneira como nos relacionamos - é impossível que as relações de amor escapem a tudo isso. Eu próprio, ao filmar, na medida em que tenho a câmara e a pessoa em frente, exerço um poder.

Há uma encenação que controla tudo aquilo que está no filme ou é tudo improviso?

Podemos falar de uma improvisação controlada. É um filme de ficção em que partimos de hipóteses que são pura fantasia, mas com algumas particularidades: o professor é professor na vida real, a mulher é a sua mulher, as alunas são as suas alunas - a partir daí, tudo é uma construção de ficção, embora procurando emoções verdadeiras. É verdade que, por vezes, fui eu que instiguei as situações, mas também é verdade que as situações adquiriram vida própria, de tal modo que as personagens as conduziram muito mais longe do que previra.

Portanto, os diálogos não estavam todos escritos.

Não estavam. A minha habilidade, consistiu em escolher pessoas que têm grande poder sobre a linguagem, capazes de gerar estas situações. Por vezes, usam frases incríveis, próprias de trovadores. Nas cenas em Itália, o professor diz à aluna: "Sabia que o teu desejo me pertencia" - é uma frase impossível de escrever e dar a um ator. O mais bonito de tudo isto é que fui o primeiro espetador surpreendido com a própria evolução do filme.

CRÍTICA

Num dos filmes que podem definir as convulsões da modernidade (Duas ou Três Coisas sobre Ela, 1967), Jean-Luc Godard celebrava uma assombrada lucidez que leva a reconhecer que "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo". Afinal de contas, filmamos não porque o mundo se deixe reproduzir, antes porque qualquer reprodução é também uma forma de redistribuir e repensar todas as relações desse mesmo mundo. O espanhol José Luis Guerin prolonga tal atitude, não apenas desafiando as fronteiras tradicionais entre documentário e ficção, mas também convidando-nos a questionar o que, por razões de educação ou conjuntura, somos levados a encarar como um dado adquirido.

O amor, por exemplo. E se o amor tivesse sido "inventado" pela literatura? Mais do que isso: e se a sua celebração envolvesse uma "conspiração" arquitetada pelos homens, apostados em impor os seus desejos como princípio de definição das mulheres? A Academia das Musas é esse filme insensato que sugere uma conspiração cultural do masculino, historicamente cega a uma verdade radical que circula no interior do espaço feminino.

Compreende-se o risco imenso que Guerin assume. Basta observarmos a desvergonha de linguagem e a obscenidade triunfante de Love on Top (e outras derivações do Big Brother televisivo). Num mundo que promove tais horrores como coisa "normal" e quotidiana, o cinema pode ser um desses derradeiros redutos em que criadores e espectadores não abdiquem da inteligência das linguagens e do exercício dos seus poderes específicos, resistindo à instrumentalização dos comportamentos humanos. Nesta perspetiva, A Academia das Musas, mais do que um filme sobre o amor, é um panfleto a favor da arte de pensar e do seu tão ignorado erotismo.

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