Reaprender a viver em plena maturidade
É aquele momento da vida em que tudo muda. Não é a entrada para a faculdade ou o nascimento do primeiro filho, mas antes um divórcio que acontece, subitamente, ao fim de 25 anos de casamento, de forma tão seca e discreta como o ar que entra por uma janela acabada de abrir, numa abafada tarde de verão. Quase não se sente. Nathalie/Isabelle Huppert limita-se a proferir ao marido, com suave espanto: "Pensei que me amarias para sempre." Mas o sempre acabou.
O Que Está por Vir é a quinta longa-metragem de Mia Hansen-Løve e a primeira que conta com uma atriz da categoria de Huppert - aqui na sua inconfundível e desenvolta aridez, que encontramos em tantos filmes da carreira, que já vai extensa, iniciada nos anos 1970 (e estamos ainda à espera de Elle, a recente colaboração com Paul Verhoeven, estreado em Cannes). Madame Bovary, A Pianista, Salve-se Quem Puder... De Claude Chabrol a Jean-Luc Godard, passando por Michael Haneke e outros, é só desfiar memórias, essas que permanecem num rosto orgulhosamente amadurecido, marcado pelas personagens que carregou.
[youtube:ytFfNrliAzg]
A profunda sabedoria do tempo
Huppert dá corpo e alma a uma professora de Filosofia sexagenária, que ao finalizar a vida partilhada com outro professor começa a entrar numa espiral diária de confronto com a liberdade inesperada. Uma espécie de solidão destreinada. É como se, de repente, ela própria fosse um livro tirado das suas sérias e recheadas estantes. As citações pontuais de grandes pensadores (Pascal, Rousseau...), que vão fazendo circular erudição no filme, animam também uma realidade muito concreta: a tragicomédia em que se transformou o quotidiano desta mulher, que desdenha do gato preto da mãe (uma deliciosamente louca Edith Scob), mas chora quando o perde de vista. O que será o futuro? É sob a interrogação, a passar nas entrelinhas de cada dia, que esta maravilhosa obra de Hansen-Løve percorre os complexos e sinuosos caminhos da intimidade humana. Ao surgir uma segunda figura masculina, que é um ex-aluno, bastante mais jovem, O Que Está por Vir não se deixa tentar por um novo romance, uma segunda oportunidade no amor, apesar de sermos agora conduzidos para uma paisagem bucólica. Hansen- Løve não está interessada numa estratégia prosaica. E esse gesto de não forçar a realidade, traçando apenas uma sugestão platónica, é definitivamente o caminho narrativo mais estimulante, concentrando em cada diálogo pérolas de sensibilidade humanista e sensualidade intelectual. Mia Hansen-Løve, filha de dois professores de Filosofia, não poderia ter matriz mais rigorosa para alcançar profundidade. A mesma que procurou no seu filme anterior, Éden, baseado na experiência do irmão como DJ.
O Que Está por Vir firma-se então num muito agradável tom menor, favorecido pelo circunspecto trabalho de fotografia de Denis Lenoir. É um filme agarrado à essência do tempo e ao modo impercetível como ele opera mudanças na vida, pequenos abalos emocionais, confirmando uma voz feminina em notório crescimento no panorama do cinema francês.