No filme A Queda de Wall Street (em exibição), Christian Bale interpreta a personagem verídica de Michael Burry, investidor e gestor de fundos que, por volta de 2003-2004, portanto com cerca de três anos de antecedência, previu a explosão dos créditos hipotecários no setor imobiliário dos EUA - como bem sabemos, esse abalo acabou por se transformar na crise financeira global que, direta ou indiretamente, tem afetado todos os cidadãos do planeta..[youtube:vgqG3ITMv1Q].Burry surge como uma figura paradoxal e desconcertante, combinando a excelência analítica com o mais bizarro comportamento. Há nele uma evidente resistência ao diálogo com os seus pares, passando os dias encerrado num gabinete envidraçado, dir-se-ia um peixe num aquário que, além do mais, gosta de trabalhar (e pensar!) ao som do mais estridente heavy metal. Ao mesmo tempo, a sua perceção da iminência da catástrofe financeira, capaz de afetar tanto as instituições bancárias como o mais anónimo cidadão, é algo que resulta não de qualquer gosto pela observação da vida social, mas "apenas" da leitura obsessiva dos números, quadros e gráficos que surgem no ecrã do seu computador..Há outra maneira de dizer isto: os efeitos muito concretos das convulsões financeiras podem detetar-se nos dramas quotidianos das pessoas, mas a sua gestão (ou a sua derrocada) envolve um complexo universo virtual de informações, organizadas e controladas por um reduzido setor de especialistas. Era esse também o tema de fundo de outro filme recente - 99 Casas, de Ramin Bahrani -, neste caso a partir da atividade de um negociante do setor imobiliário que, na prática, vai executando as ordens de despejo dos que não conseguiram satisfazer as exigências dos empréstimos contraídos..Wall Street, ganância & etc..Dir-se-ia uma história de cruel "suspense" em que, subitamente, se rasgou a fronteira entre a frieza dos números e a derrocada da vida de muitas famílias. Mas não é uma tragédia abstrata. Numa entrevista à rádio pública americana (NPR), Adam McKay, realizador e coargumentista de A Queda de Wall Street, destacou, em particular, a "inteligência" do livro de Michael Lewis (ed. Lua de Papel) em que o seu filme se baseia: "Senti-me emocionalmente envolvido com as personagens e o seu mundo, em particular com o modo como tudo vinha das profundezas de Wall Street." McKay compreendeu a importância de evitar qualquer linguagem cifrada: "Digamos que, em última instância, percebi que as coisas não são assim tão difíceis e que os grandes bancos, as agências de rating e até algumas formas de jornalismo económico se esforçam imenso por complicar as coisas de modo que as pessoas não consigam reagir.".Quando olhamos para a história das atribulações do mundo financeiro no interior da história mais geral do cinema americano, não podemos deixar de reconhecer que o impacto de alguns filmes emblemáticos passa por essa capacidade de encenar tais atribulações a partir de vivências e personagens apelativas (por boas ou más razões). Lembremos o exemplo modelar de Wall Street (1987), de Oliver Stone: mais do que um relatório técnico dos delírios financeiros dos anos 1980, o filme retoma o modelo muito clássico das aventuras de iniciação, com o jovem e inexperiente corretor da bolsa (Charlie Sheen) a tentar seguir as pisadas de um mestre da especulação (Michael Douglas), apaixonado pelas miragens da "ganância"..A ganância, precisamente, era o tema e o título - Greed (1924) - de um clássico absoluto do período mudo, realizado pelo genial Eric von Stroheim a partir do romance McTeague (1899), de Frank Norris. Através de uma odisseia em parte vivida na paisagem agreste do Vale da Morte, o filme encena a utopia do sonho americano, desmontando-a através de uma saga em que o fascínio do ouro se confunde com a decomposição de todos os laços humanos..Mesmo não esquecendo que os conflitos entre Stroheim e o estúdio produtor, Metro Goldwyn Mayer, implicaram a perda irremediável da versão original (com quase oito horas...), Greed ficou como uma assombrosa parábola universal que há muito transcendeu o seu contexto histórico. O certo é que há casos em que os mais variados registos dramáticos integram referências muito diretas aos grandes abalos económico-financeiros, em particular à Grande Depressão de 1929..As Vinhas da Ira (1940), adaptação do romance de John Steinbeck por John Ford, será, por certo, um dos mais conhecidos. Mas vale a pena não esquecer outros exemplos menos óbvios como Esplendor na Relva (1961), de Elia Kazan, ou Lua de Papel (1973), de Peter Bogdanovich - no primeiro, a paixão do par central (Natalie Wood-Warren Beatty) evolui a par dos sinais cada vez mais cruéis da crise financeira; no segundo, um homem e a sua filha (Ryan O"Neal e Tatum O"Neal, pai e filha na vida real) tentam contrariar os efeitos da crise através de um "esquema" que envolve a venda ao domicílio de exemplares da Bíblia....Uma questão de "engenheiros".Ao contrário do que proclama uma visão banalmente tecnicista do cinema americano (como o cinema dos "efeitos especiais"), Hollywood tem refletido com grande rapidez, por certo com muitas diferenças e contradições internas, as perturbações sociais dos EUA - lembremos o caso admirável de Os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, um elaborado retrato do escândalo Watergate surgido cerca de um ano e meio depois da resignação de Richard Nixon..A crise de 2008 terá tido o seu primeiro grande retrato ficcionado em 2011, no filme O Dia Antes do Fim, de J.C. Chandor. Também aí, curiosamente, tal como em A Queda de Wall Street, o essencial acontecia em salas fechadas, com as personagens principais a contemplar, em crescente angústia, as informações que vão chegando através dos circuitos informáticos..Também em 2011, Inside Job - A Verdade da Crise, de Charles Ferguson, arrebatou o Óscar de melhor documentário através de uma investigação didática de um mundo em que, decididamente, a responsabilização dos protagonistas nem sempre encontra uma via socialmente redentora. Uma das personalidades entrevistadas, Andrew Sheng (economista ligado ao Asia Global Institute), perguntava mesmo: "Porque é que um engenheiro financeiro deverá receber quatro a cem vezes mais que um verdadeiro engenheiro?" E rematava: "Um verdadeiro engenheiro constrói pontes. Um engenheiro financeiro constrói sonhos. E, podem crer, quando esses sonhos se transformam em pesadelos, são as outras pessoas a sofrer as consequências.".Do Céu Caiu uma Estrela (1946).Não se poderá dizer que os filmes de Frank Capra (1897-1991) sejam sobre a especulação financeira. Longe disso. O certo é que os seus melodramas familiares envolvem componentes que questionam o lugar do dinheiro no "Sonho Americano". Este seu primeiro filme depois da Segunda Guerra Mundial é, afinal, um conto moral sobre um chefe de família exemplar e os imbróglios em que o dinheiro o envolve - é também uma das mais lendárias interpretações de James Stewart..[youtube:LJfZaT8ncYk].Os Ricos e os Pobres (1983).Com realização de John Landis, eis um bom exemplo de uma comédia capaz de se manter fiel à grande tradição das fábulas políticas de Hollywood, em particular através da sarcástica observação das diferenças de poder social e financeiro dos seres humanos. Trata-se de saber como é que duas personagens totalmente estranhas entre si - um gestor financeiro (Dan Aykroyd) e um sem abrigo (Eddie Murphy) - se comportariam face ao dinheiro se os seus papéis fossem trocados....[youtube:ZjDbJQKDXCY].Wall Street (1987).Realizado por Oliver Stone, logo após a consagração de Platoon, é o mais lendário retrato cinematográfico dos bastidores de Wall Street, reflectindo o turbilhão da década de 80 e, em particular, o modo como algumas fortunas foram consolidadas através de processos, no mínimo, de duvidosa moral financeira. A personagem de Gordon Gekko, o especulador que proclama "a ganância é boa", tornou-se uma figura iconográfica do cinema de Hollywood - valeu um Óscar a Michael Douglas..[youtube:FCctqbRrsBQ].A Fogueira das Vaidades (1990).Baseado no romance homónimo de Tom Wolfe, com Tom Hanks, Melanie Griffith e Bruce Willis, este é, por certo, o filme mais mal amado de Brian De Palma. A pretexto dos seus problemas de produção, foi mesmo trucidado por alguns sectores da imprensa americana antes de ter estreado... Através de uma teia de verdades e mentiras, jogos políticos e muitas manobras de bastidores, o mundo de Wall Street surge retratado como um teatro de muitas máscaras e traições..[youtube:ZIz_RlNZZlg].O Dia Antes do Fim (2011).Se já existe na produção americana um corpo de filmes sobre a crise financeira de 2008, este é, sem qualquer dúvida, um momento fundador. Através de um elenco admirável (Kevin Spacey, Paul Bettany, Jeremy Irons, Demi Moore, Stanley Tucci, etc.), assistimos a uma verdadeira tragédia interior, com os funcionários de um banco de investimentos a assistir, nos seus computadores, ao apocalipse de todo um sistema - foi a estreia na realização do brilhante J. C. Chandor..[youtube:Y2DqFRsPrns]