Paulo Morais é o primeiro português embaixador da gastronomia japonesa
São três décadas a lidar com a gastronomia do mais oriental dos países da Ásia, algo que faz com paixão e uma qualidade reconhecida pelos clientes mais exigentes, a começar pelos próprios japoneses que almoçam ou jantam no seu Kanazawa, em Algés. Embaixador da Boa Vontade da Culinária Japonesa é o título atribuído ao chef Paulo Morais pelo governo do Japão.
Assim que Paulo Morais foi informado de que tinha sido nomeado embaixador da gastronomia japonesa - uma distinção que pela primeira vez acontece a um chef português - reagiu com um "uau". Sentiu que era "a recompensa por estar a fazer a coisa certa. Mas uma responsabilidade também", diz, atrás do balcão do Kanazawa, em Algés, restaurante reputado pela qualidade do sushi, mas não só, que aqui é servido. Tudo com um toque pessoal do chef, mas ao mesmo tempo com respeito total pelos princípios tradicionais de uma das mais conceituadas cozinhas a nível mundial (reconhecida pela UNESCO como Património Imaterial da Humanidade). Em Portugal só outro chef possui a distinção de Embaixador da Boa Vontade da Culinária Japonesa: o japonês Masaki Onishi, do restaurante Ichiban, no Porto.
Relacionados
Ver o chef Paulo Morais (ou Paulo, como combinámos ser o tratamento) preparar o peixe é, só por si, um espetáculo. E é à vista dos clientes, que nunca ultrapassam os oito, pois essa é a capacidade dos lugares ao balcão do Kanazawa e não há mesas. São três décadas de trabalho com cozinha japonesa a virem ao de cima, também o talento de quem desde cedo se apaixonou pela gastronomia do país asiático e teve a oportunidade de fazer dois estágios no Japão. "Entrei na cozinha japonesa por mero acaso, mas apaixonei-me logo, fui crescendo e evoluindo sem me preocupar se a cozinha japonesa ia ser o que é hoje em dia a nível mundial. O meu foco sempre foi gostar do que estava a fazer e sentir-me realizado. Não saio daqui com uma pipa de massa todos os dias, mas sinto-me realizado, muito feliz", explica este homem, de 50 anos, nascido em Angola de pai transmontano e mãe beirã. Aos dois anos acompanhou a família no regresso a Portugal, "ainda antes da descolonização e da independência, pois a guerra parecia não ter fim", e depois de algum tempo a viver no Norte e em Coimbra acabou por se fixar na zona de Lisboa.
A vontade de ser independente, conta, levou-o a decidir tirar um curso de cozinha aos 18 anos. Portugal tinha aderido pouco antes à então CEE e abundavam os cursos profissionais. E como, das tarefas caseiras, aquela em que Paulo se sentia mais confortável era a junto do fogão, a aposta na cozinha foi natural. "Não sabia muito, mas estava à vontade", admite. Foi um curso de um ano e meio, com estágio profissional num restaurante de luxo em Lisboa, que ainda existe e que não deixou boas memórias para o jovem cozinheiro, a ponto de ter rejeitado uma proposta para lá ficar. "Depois, na Escola de Hotelaria do Estoril falaram-me de um restaurante japonês que estava à procura de cozinheiros. Na época não sabia nada de sushi nem tinha sequer provado. Não havia internet e os livros eram pouco acessíveis. E fiquei surpreendido por me terem perguntado a minha altura. Depois percebi", relembra, entre risos.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.

O Kanazawa (Rua Damião de Góis, 3-A, Algés) propõe menus de degustação ao jantar. Para os almoços, são três as opções: caixa bento (na imagem), rámen e chirashi.
© Alice Neto - embaixada do japão
"Lá fui ao Furusato, que havia na praia do Tamariz e pertencia a uma cadeia internacional. Foi amor à primeira vista. Adorei tudo naquele restaurante. A equipa era muito diversa. Tínhamos um chef japonês, o meu chef direto era um senhor de Hong Kong, havia outro de Macau, ainda dois filipinos, um timorense e dois portugueses. Todos os dias era uma descoberta. A pergunta sobre a altura foi porque o cargo que estavam a querer oferecer era o teppan, que é a chapa para os grelhados. Então, para servir as pessoas mais à frente queimava-me. O ideal é 1,60 m e eu tenho 1,73m", conta, enquanto garante que a preparação do almoço prossegue. Acrescenta que o chef japonês, que falava inglês, o marcou imenso. Teria 30 anos na altura e fez questão de acompanhar Paulo em todas as tarefas que teve no primeiro dia, como descascar camarão ou fazer saladas, e no fim do dia limpou a cozinha e lavou o chão junto com o principiante, dizendo no fim que no dia a seguir, sim, já seria com ele. Trabalharam juntos durante um ano e veio outro chef, de 50 anos, também japonês, e Paulo pôde continuar a aprender, agora uma versão da cozinha japonesa mais tradicional, pratos típicos.
Ao fim de cinco anos, Paulo falou da vontade de mudar para outro restaurante japonês para novas experiências. Descobriu então que na tradição japonesa a lealdade a uma empresa, seja a Toyota ou os restaurantes Furusato, é o normal - emprego para a vida. "Pediram para não ir para o Midori, na Penha Longa, e acabei por ficar, mas a relação pessoal foi afetada." Acabou mesmo por sair, entrando no Midori como cozinheiro de terceira e saindo como chef. Nesses sete anos conseguiu concretizar o desejo de ir ao Japão: "Fui duas vezes, para serviços na mesma cadeia do Penha Longa, para o Westin Osaka, que era lindo, e depois tive oportunidade também de estagiar num hotel em Fukuyama, que adorei. Este segundo hotel era mais pequeno, numa cidade mais pequena também, havia uma disponibilidade muito maior. Foram dois estágios impecáveis, porque posso estar a vida inteira a fazer cozinha japonesa aqui em Portugal que quando vou lá surpreendo-me sempre com o rigor deles."

O Kanazawa (Rua Damião de Góis, 3-A, Algés) propõe menus de degustação ao jantar. Para os almoços, são três as opções: caixa bento, rámen (na imagem) e chirashi .
© Alice Neto - embaixada do japão
Apesar de a gastronomia japonesa ser muito diversificada, e de Paulo até ter começado pelos quentes, pergunto sobre a arte de fazer sushi e sashimi e diferenças que notou no Japão, pois no meu caso, quando visitei o país, percebi que tradicionalmente não usam o salmão, aqui tão comum. "Tirando o salmão, que não se usa, os peixes não eram assim tão diferentes dos de Portugal, senti mais diferença nos mariscos. Têm mais diversidade de crustáceos e de bivalves, mas nós, em termos de peixe, estamos ela por ela com o Japão, creio. A não ser o peixe venenoso, o fugu, com o qual também se faz sushi, sashimi. Eu provei no verão e o veneno parece que é mais concentrado no inverno, tive sorte", relembra, rindo.
Dessas viagens ao Japão ficou também a sensação de que o povo conhece Portugal não só por terem sido os portugueses os primeiros europeus a chegar ao arquipélago e lá deixarem desde o cristianismo até palavras como pan e koppu ou o doce castela, espécie de pão de ló, mas também figuras mais atuais serem conhecidas, como Ronaldo, Figo, Amália ou os Madredeus.
Houve outros restaurantes na vida de Paulo, até passagem pelo Algarve, e cinco anos no Bica do Sapato, em Lisboa. Chegou a participar em Oeiras num restaurante-escola, onde arriscou ir além da cozinha japonesa, experimentando outras cozinhas asiáticas. Depois abriu em Lisboa o seu próprio restaurante, "o Umai, com 30 lugares, com aposta muito grande na cozinha japonesa e que era também uma referência de cozinha asiática. Em 2014, porém, tive de fechar o restaurante, durante a altura da troika não consegui fazer face a todas as despesas. Fiquei uma temporada em que só dava aulas".

O Kanazawa (Rua Damião de Góis, 3-A, Algés) propõe menus de degustação ao jantar. Para os almoços, são três as opções: caixa bento, rámen e chirashi (na imagem).
© Alice Neto - embaixada do japão
Estou a almoçar junto com dois elementos da embaixada japonesa, que conhecem bem o Kanazawa, a diplomata Yuka Iwanami, fluente em português, e a fotógrafa Alice Neto. As refeições aqui são sempre por marcação e à noite há os famosos menus de degustação. Três opções estão disponíveis para o almoço: caixa bento, chirashi e rámen. Há também vinhos vários e, claro, saké, a aguardente de arroz japonesa. Paulo explica-me as peças na caixa bento, a minha escolha, peixes como robalo, dourada, atum e lírio, este último dos Açores e cada vez mais valorizado pelos chefs.
O Kanazawa, que agora é do chef Paulo Morais, foi aberto pelo japonês Tomo Kanazawa, daí o nome. E a ideia sempre foi a cozinha kaiseki, que, explica o chef, "surgiu nas casas de chá como complemento para as pessoas ficarem mais tempo a beber e a comer. Vinham tabuleiros com várias comidas e as pessoas escolhiam e comiam a partir daí. Depois passou para os templos budistas e aí tornou-se o kaiseki vegetariano. Continuou a ser servido em tabuleiros, até que foi para a corte do imperador e aí vieram cozinheiros de todo o lado mostrar o que cada região tinha de melhor, só com produtos da época. Para dar ênfase a cada um dos produtos, a comida começou a ser servida em separado, para o imperador ficar a saber a riqueza de matéria-prima de cada local. Eram servidos prato a prato - é um menu que tem muitos momentos para serem desfrutados. Mais do que intimista, é um menu para degustar e provar um bocadinho de tudo o que há de melhor. Sempre da época e o mais local possível. Hoje em dia a cozinha mais famosa em termos de kaiseki é Quioto, porque tem uma biodiversidade que não existe em mais lado nenhum do Japão e portanto produtos variados".
Quando o chef Tomo em 2017 decidiu regressar ao Japão, e percebendo o gosto de Paulo, a quem tinha dado formação, pela cozinha kaiseki, abordou-o para saber se queria ficar com o restaurante. "Eu pensei logo que sim, mas depois recordei-me que tinha acabado de fechar um restaurante e, além disso, neste eram só oito lugares, qual seria a sustentabilidade? Depois pensei que nunca se diz não a um japonês, portanto aceitei. Comecei com o dinheiro que tinha separado e fiz um acordo com o chef Tomo para ir pagando."
A equipa do chef Tomo eram a mulher e a filha, pelo que Paulo teve de reconstruir o staff. "Somos quatro pessoas: uma mais focada nas sobremesas e o serviço de sala, dois cozinheiros e eu. O que comecei a fazer foi abrir aos almoços. O chef Tomo só fazia jantares. Estamos agora a fechar domingo e segunda."

© Alice Neto - embaixada do japão
Casado com uma chef, Anna Lins, Paulo é pai de duas filhas, Jade e Íris, de 19 e 17 anos, desde pequenas apaixonadas por cultura e cozinha japonesa. "O primeiro sushi do Go Natural começou a ser feito em minha casa. Então acordava muito cedo para deixar as coisas prontas para eles irem buscar, e a Jade, com dois anos, aparecia na cozinha e roubava arroz de sushi para comer, até que um dia roubou wasabi. E hoje em dia é grande fã, é um ingrediente que adora", ri-se. Tanto ele, que descobriu o sushi já adulto, como as filhas, que cresceram a comer comida japonesa, irritam-se com a proliferação de restaurantes que imitam aquilo que os verdadeiros chefs fazem. "Não é possível ser barato porque basta ver o preço do peixe, uma das principais matérias-primas que usamos. Trabalho em cozinha japonesa há 30 anos e tenho visto a evolução do sushi e da cozinha japonesa em geral e sempre achei que era bom haver mais restaurantes, porque isso ia trazer concorrência, mais foco, mais partilha de conhecimento e toda a gente podia evoluir. Mas não aconteceu isso, aconteceu a vulgarização de uma imitação em que o foco não está no que é sagrado para a cozinha japonesa, que é a sazonalidade e os sabores. Mais vale usar um peixe menos nobre - o último que usei foi o badejo num prato grelhado e descobri que, além de ser ótimo para grelhar, tem uma textura e gordura impecável para comer cru."
Também por esta inconveniente proliferação de imitações a grande importância da autenticidade que a distinção japonesa reconhece e premeia, como realça o embaixador japonês em Portugal, Ushio Shigeru: "A atribuição do título de Embaixador da Boa Vontade da Culinária Japonesa ao chef Paulo Morais traz-me uma enorme satisfação pelo reconhecimento internacional, pelo governo do Japão, do seu percurso e trabalho em prol da promoção da culinária japonesa em Portugal. Quando tive a oportunidade de degustar as iguarias do chef Paulo, fiquei deveras comovido, pois consegui sentir o seu sentimento e paixão pela culinária japonesa bem representados nos seus pratos, protegendo o conceito washoku da culinária japonesa - equilíbrio, harmonia e graciosidade."
leonidio.ferreira@dn.pt
Partilhar
No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.
Assine aqui aquele que é o seu jornal