"Uma vez por ano tiramos a bata e vestimos o fato para tocar em grandes salas"
Bernardo Neves começou a tocar instrumentos de percussão aos 6 anos, na banda filarmónica de Tomar, onde nasceu. A música fez sempre parte da sua vida, mas, quando teve de escolher uma carreira, a medicina sobrepôs-se. Hoje, já não dedica tanto tempo como gostaria à percussão e ao piano - que também toca -, mas pelo menos uma vez por ano mete a bata branca de lado, veste um fato e junta-se a outros médicos na World Doctors Orchestra (em tradução literal, Orquestra Internacional dos Médicos) para tocar em algumas das salas de espetáculos mais emblemáticas do mundo.
"Uma vez por ano, tiramos a bata e vestimos o fato para tocar em grandes salas, com um bom reportório", diz. As reuniões entre estes médicos músicos acontecem mais do que uma vez por ano, mas o especialista em medicina interna do Hospital da Luz, em Lisboa, não tem oportunidade de estar presente durante os três ou quatro espetáculos que preparam todos os anos para angariar dinheiro para causas ligadas à saúde. Neste ano, já atuaram na sala da Orquestra Filarmónica de Paris, em Jerusalém, em Telavive, em Houston, e preparam-se para subir ao palco do auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, nesta sexta-feira às 21:30, e ao da Casa da Música, no Porto, neste sábado.
"Quando fui para o curso de Medicina, tive de deixar a música um bocadinho para segundo plano e isto agora é uma reaproximação, tal como acontece com os meus colegas. Alguns deles dedicam muito tempo à música, outros menos, mas é uma oportunidade para desligarmos e pensarmos na música", explica Bernardo Neves, que se juntou à orquestra em 2014 e é o responsável pelo encontro em Portugal.
Até este ano era também o único português a integrar a orquestra, por onde já passaram mais de 1400 médicos de todo o mundo, desde que o projeto foi criado em 2008. Mas a estreia em solo luso despertou o interesse de mais seis clínicos, que estão entre os quase 120 médicos que vão atuar em Portugal. "Quase todos os médicos têm formação profissional em música, muitos já tocaram em orquestras. São bons músicos e muito apaixonados", indica o maestro e fundador da World Doctors Orchestra, o alemão Stefan Willich.
"A orquestra procura combinar a música com a medicina. Usando a emoção da linguagem musical, que é internacional, para ajudar os cuidados de saúde onde é preciso. O que fazemos é juntarmo-nos enquanto médicos e doamos o dinheiro para organizações de saúde", diz o professor na universidade de Medicina de Charité, em Berlim, e ex-presidente do Conservatório de Música Hanns Eisler, da mesma cidade alemã.
Os destinos por onde passam são planeados com mais de um ano de antecedência, pedem-se voluntários de acordo com as necessidades das peças musicais, recebem as partituras e juntam-se durante uma semana para ensaiarem todos juntos antes de cada espetáculo. "É uma grande experiência para todos, visitamos muitos sítios onde nunca estivemos e temos a oportunidade de fazer música com amigos em sítios diferentes", explica o violinista Jeff Iung, que chegou a Portugal na segunda-feira, vindo de Detroit, nos Estados Unidos.
A viagem, o hotel, as refeições fora do horário dos ensaios, todas as despesas são suportadas por cada músico. E os dias que passam a viajar são na maioria dos casos dias de férias. Fazem-no pela oportunidade. "Em Portugal, não temos muita tradição de orquestras amadoras e mesmo orquestras profissionais não há muitas", diz Bernardo Neves. E pela causa. Na última década, a orquestra já angariou mais de um milhão de euros para doar a instituições sociais.
Em Portugal, todas as receitas da bilheteira (que devem rondar os dez mil euros) reverterão a favor da organização não governamental Health4Moz, que está a construir o Hospital Central da Beira, em Moçambique, destruído pelo ciclone Idai, em março de 2019. E para a delegação alemã dos Médicos do Mundo.
Também o reportório será especial. Inclui Mozart (Don Giovanni Overture), Bruckner (Symphony No. 4) e ainda uma encomenda feita ao compositor português Eurico Carrapatoso, que criou a peça Arsis e Thesis de propósito para a estreia em Portugal da World Doctors Orchestra, com o clarinetista Bruno Graça. "É uma honra enorme contribuirmos também para a escrita de composição do enorme Eurico Carrapatoso", refere Bruno Graça, o único músico sem veia médica em cima do palco do Teatro Aberto, onde têm decorrido os ensaios.
A maior parte da orquestra é constituída por médicos em pleno exercício da profissão, mas há também quem já se tenha reformado e quem ainda não tenha sequer tido tempo para consultar os primeiros pacientes. É o caso dos recém-licenciados, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Bárbara Saraiva e Sebastião Martins, ambos com 25 anos. Ela quer ser pediatra, ele ainda não tem a certeza de qual será a especialidade a seguir, mas de uma coisa estão os dois seguros: não querem deixar a música pelo caminho, apesar de terem escolhido a medicina.
"Acabei por escolher medicina, mas mantive sempre a atividade musical na faculdade." Sebastião toca violino desde os 4 anos, fez o curso completo do Conservatório e depois de ter entrado para a universidade juntou-se à Orquestra Médica de Lisboa, que passou a dirigir, e ao coro da mesma orquestra, da responsabilidade de Bárbara Saraiva, que toca flauta transversal desde os 6 anos.
Encontram a World Doctors Orchestra na internet enquanto procuravam precisamente grupos musicais de médicos. "No ano passado, recebemos os formulários a dizer que era em Portugal. Ficámos eufóricos. Nunca pensei em tocar na Gulbenkian. Temos a oportunidade de tocar nas salas de concertos mais extraordinárias do mundo, onde, se calhar, muitos músicos profissionais não vão poder tocar. Pisar a Filarmónica de Paris, a Opera de Sydney é único", diz Sebastião.
"Nós temos aqui a nossa vida em Portugal e achamos que se calhar somos pessoas um bocadinho diferentes, porque tentamos fazer uma vida paralela entre a música e a medicina. E depois chegamos aqui e percebemos que não somos os únicos, há muita gente que partilha esta experiência entre estes dois mundos. Escolhi a medicina, mas sempre quis a música também", indica Bárbara.
"Há muitos médicos ligados à música. Houve grandes compositores que eram também médicos", explica Bernardo Neves. "A música surge como uma maneira de a pessoa se abstrair dos problemas do dia-a-dia, de nos concentrarmos noutra atividade. Nós, na medicina, realmente lidamos com extremos da vida e do sofrimento humano e a música é, de alguma maneira, uma forma de sentirmos e mostrarmos este antagonismo que existe entre grande felicidade e infelicidade."
Para o especialista em medicina interna, a relação entre a música e a medicina pode ainda ser explicada com base em traços de personalidade comuns às duas profissões. São áreas que exigem um esforço e uma atualização constante. "É preciso treinar muito. Para se chegar a um grande nível, é preciso um esforço brutal."
"Tocar numa orquestra é um exercício muito parecido com aquilo que faço no meu hospital. Eu até sou médico de medicina interna e nós temos de lidar com muitos especialistas em prol do doente. Como percussionista, nem sou dos que tocam mais, mas quando toco é importante que aquilo saia bem e que não atrapalhe o resto da orquestra. O que importa aqui é que no final a música soe bem. No hospital é o mesmo, o que interessa é que o doente fique bem, independentemente do nosso grau de participação. É um trabalho de equipa, no hospital e na orquestra", diz o médico.