Os trabalhos para casa deviam acabar? Secretária de Estado acha que sim

Alexandra Leitão argumenta que alunos devem trabalhar em sala de aula de forma diferente, para não serem sobrecarregados. Diretores e especialistas pedem moderação nos TPC
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"A escola (pública ou privada) deve fazer com que se cumpra o 'direito ao ócio e ao desporto', tendo por dever organizar as atividades de aprendizagem de forma a que não ponham em causa esse direito dos alunos à participação na vida social e familiar". Esta foi a ideia que serviu de mote a uma petição lançada há meio ano por José Eduardo Moniz, que propunha a criação de uma lei para regular os trabalhos para casa (TPC) e que em meio ano já soma mais de 10 mil signatários. Uma causa que acaba de ganhar um reforço muito relevante: a própria secretária de Estado da Educação defende que os alunos não deviam levar trabalhos para casa.

Numa entrevista dada há uma semana ao podcast Perguntar Não Ofende, e depois de Daniel Oliveira defender que as escolas deveriam dar o "enorme salto de acabarem com os trabalhos para casa", Alexandra Leitão respondeu com um rotundo "também acho!". Confrontada pelo seu entrevistador em relação às resistências de professores e pais a essa mudança cultural, a secretária de Estado Adjunta e da Educação argumentou que a cultura nas escolas já está a mudar e que todas as medidas de flexibilidade introduzidas pelo atual governo " vão no sentido de os alunos trabalharem em sala de aula de forma diferente e não sobrecarregados com trabalho fora da sala de aulas".

Uma ideia que merece a aprovação de psicólogos de educação e de diretores, embora o conceito chave seja sempre a moderação, nunca a proibição cega. "Os trabalhos para casa têm de ser avaliados de acordo com as idades. Nos 1º e 2º ciclos, os alunos têm aquilo a que chamamos uma overdose de escola. As crianças chegam a estar 55 horas semanais na escola, podem entrar às 8.00 e sair às 19.00. Portanto, no 1º ciclo devia ser de evitar o recurso ao trabalho para casa. E, regra geral, sem ser radical, há uma sobreutilização dos trabalhos para casa", considera José Morgado, especialista do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA).

Segundo o psicólogo, que se socorre de um estudo da OCDE, os trabalhos para casa acentuam desigualdades sociais, já que as famílias mais pobres não só tendem a ter menores níveis de escolaridade para ajudar os filhos, como não têm à partida capacidade financeira para contratar explicadores. Para já não falar dos horários de trabalho sobrecarregados e do tempo que não é dado aos pais para acompanharem os estudos dos alunos.

"Mas há também que distinguir entre o trabalho da escola feito em casa e o trabalho feito em casa, como quando se lê um livro para uma criança de cinco anos quando ela ainda nem sequer entrou no 1º ciclo. Isso é trabalho feito em casa, é incutir hábitos de leitura, e é importante. Não vale a pena proibir os trabalhos para casa, mas sim racionalizar. Pode fazer sentido para treinar competências, mas não para aprender o que devia ser dado nas escolas".

Repensar o acesso à universidade

No secundário, o principal problema parece estar no modelo de acesso ao ensino superior, na importância excessiva dada aos exames nacionais e às notas. É a própria secretária de Estado quem diz que temos de "revisitar" o acesso à universidade, porque o peso está "posto inteiramente no secundário", que não deve ficar "refém do acesso ao superior".

"As medidas de flexibilidade curricular estão a gerar entusiasmo nos professores. Temos os dois professores, em que um dá Matemática e o outro Físico-química, ou os projetos como um que já vi em que os miúdos vão a uma gruta buscar bichos para analisar com a professora de Biologia. Isto tem o entusiasmo dos professores e começa a ter o apoio dos pais", explica Alexandra Leitão no podcast de Daniel Oliveira. Um apoio que encalha quando os pais perguntam: ' então e a preparação para os exames?'. "E porque é mais difícil ter o apoio dos pais?", questiona a secretária de Estado, para logo deixar a resposta. "Porque está vendida uma ideia de que isto é facilitismo. Este caminho tem de ser feito com os pais, explicar que os filhos não estão a aprender menos, que estão a aprender mais, de uma forma diferente".

Uma ideia confirmada pelo presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), que conta que os pais estranham e reprovam se os professores não marcam TPC. "Precisamos da ajuda dos pais para evitar esse volume exagerado de trabalhos", pede Filinto lima, que também dirige o agrupamento Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia. "Se tivermos duas escolas lado a lado com posturas diferentes sobre os trabalhos para casa, isso pode criar problemas de perceção juntos dos pais", acrescenta Arlindo Ferreira, diretor escolar na Póvoa de Varzim.

Escolas deviam garantir o estudo fora das aulas

O que se nota no terreno é que, no secundário, os trabalhos para casa são muitas vezes feitos já em centros de explicações, onde pode haver desarticulação com o que é desenvolvido na escola, alerta José Morgado, que dá exemplo positivo do Agrupamento de Escolas de Carcavelos, que disponibilizou salas para os explicadores. "As escolas deviam ter dispositivos de apoio para exercitar competências, uma espécie de controlo de qualidade e de coerência da ajuda dada fora da sala de aula".

Filinto Lima concorda que os TPC podem "ferir a equidade" entre os alunos e que, idealmente, deviam ser as escolas a garantir espaços para apoio extracurricular, "para que o trabalho autónomo dos alunos, que também é importante, fosse orientado por professores dessas áreas e das suas escolas".

Já Arlindo Ferreira, diretor do agrupamento de escolas Cego do Maio, em Póvoa do Varzim, e conhecido blogger da área da Educação, até acha que muitos centros de explicações se adequam ao trabalho que é dados nas escolas, mas reconhece que a partir do 2º ano pode haver um excesso de trabalhos de casa, pedidos pelos professores das diferentes disciplinas, e que cabe a cada escola coordenar o trabalho para evitar acumulações. No seu caso, garante que não há excessos. "Não impedi que se passem trabalhos para casa, mas sem exageros. É visto como uma forma de estimular a participação dos pais no trabalho dos filhos. Se for com conta, peso e medida, para consolidar matérias, nada contra", defende Arlindo Ferreira.

O problema é mesmo quando as escolas não apresentam soluções para os alunos que estão a ficar para trás ou está sobrecarregada de matéria e demasiado focada nos resultados e recorre ao TPC para resolver isso, contrapõe José Morgado. O psicólogo educacional considera que as mudanças nesta área terão de passar pela formação inicial dos professores, pela sensibilização e num ensino "menos assente nos manuais", porque há alunos "que não cabem num manual" e que as escolas têm de arranjar soluções para eles.

No final do ano passado, a comunidade Valenciana foi a primeira região autónoma espanhola a aprovar uma norma, que entrou em vigor no dia de Natal, para limitar os trabalhos de casa para os estudantes entre os seis e os 16 anos. Uma iniciativa que inspirou a petição lançada por José Eduardo Moniz.

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