"É como se estivéssemos a ser esfaqueadas". Marcha alerta para a endometriose
Susana Fonseca tinha 11 anos quando teve a primeira menstruação. Veio acompanhada de dores abdominais fortes e problemas intestinais, que se foram agravando ao longo dos anos. "É normal. Isso passa quando fores mais velha", diziam-lhe. Mas o quadro era cada vez mais complexo, obrigando-a a ir ao hospital com frequência para receber medicação por via intravenosa. Além das dores fortes, tinha febre, vómitos, infeções urinárias. Primeiro, era obrigada a faltar às aulas, mais tarde ao trabalho. "É como se estivéssemos a ser esfaqueadas. Vêm à cabeça os piores pensamentos". Aos 24 anos, recebeu o diagnóstico: endometriose. "Nessa altura, tinha cinco dias de vida normal num mês. Passava o resto dos dias com sintomas", recorda.
Quando a doença foi detetada, as lesões da endometriose - que consiste no aparecimento e crescimento do tecido endometrial fora do útero - já estavam espalhadas pelo intestino, bexiga, ovário e trompa esquerda. "Necessitei de cirurgia para limpar a doença e repor a anatomia dos meus órgãos, que estavam colados uns aos outros", conta ao DN. Recuperou alguma qualidade de vida, mas a doença voltou a avançar. Foi novamente operada à endometriose quando foi submetida a uma cesariana para o nascimento da filha, mas "voltou o mesmo quadro". Aos 31 anos, Susana foi sujeita a uma histerectomia total. "Fiquei sem ovários, sem útero, sem nada. Também perdi um bocado do intestino". É um caso extremo, ressalva, "mas, ainda assim, bastante comum". Acredita que, se lhe tivessem "dado ouvidos aos 16 anos, talvez a doença não tivesse chegado ao ponto a que chegou". E foi por isso que criou a associação MulherEndo - Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose, que este sábado organiza uma marcha em nome de uma maior divulgação e sensibilização da doença.
A "EndoMarcha" realiza-se em Lisboa, pelo sexto ano consecutivo, com início marcado para as 15.00, na Praça do Comércio, e dura sensivelmente 30 minutos em caminhada lenta. Inserida no movimento mundial WorldWide EndoMarch, que procura alertar para a necessidade de haver uma maior consciencialização sobre a doença, começou com a participação de 100 mulheres, mas tem vindo a crescer - já há 700 inscrições para este ano. "Queremos mostrar à população e aos governantes que a doença existe e que é um problema de saúde pública. Se houvesse um diagnóstico atempado e se os médicos estivessem alerta, pouparíamos muito dinheiro", sublinha Susana Fonseca.
É estimado que a doença afete, em média, 10 a 15% das mulheres em idade fértil, o que quer dizer que em Portugal podem existir cerca de 240 mil mulheres com endometriose. São mulheres que, muitas vezes, não recebem a assistência clínica necessária, porque podem passar muitos anos até a doença ser identificada. Filipa Osório, ginecologista no Hospital da Luz, reconhece que "o diagnóstico tende a ser tardio, porque há muita gente que não faz um diagnóstico correto ou que desvaloriza as queixas das mulheres. Até as próprias mulheres às vezes desvalorizam, porque ouvem dizer que é normal ter dores na menstruação". Mas não é normal, prossegue, "terem dores incapacitantes, que interferem na sua qualidade de vida".
Segundo a especialista, que se dedica essencialmente à endometriose, a doença "corresponde ao crescimento do endométrio fora da cavidade uterina" (o local habitual), levando ao surgimento "de quistos e nódulos". "Além do útero, o mais frequente é afetar órgãos pélvicos, nomeadamente intestino, septo retovaginal, bexiga, ovários, bem como locais mais distantes como umbigo ou pulmões", explica a ginecologista, destacando que "já foi descrita em todos os órgãos do corpo".
Ainda não foi descoberta a cura para esta patologia, mas existem algumas formas de a controlar ou de diminuir os sintomas. "O tratamento é variável e pode ir desde os suportes anti-inflamatórios ou analgésicos para controlar a dor até à terapêutica hormonal na tentativa de suprimir o funcionamento do endométrio. Em alguns casos, é necessária cirurgia para remover as lesões". De uma forma geral, a doença provoca o aparecimento de sintomas, sendo que em 80% dos casos a dor é a sua principal manifestação; em 20% dos casos provoca infertilidade.
Vânia Custódio, de 40 anos, conhece bem as dores de que falamos. Descobriu que sofria de endometriose aos 27 anos, na sequência de uma operação ao apêndice, na qual os médicos detetaram que "havia tecido [das células que constituem o endométrio] espalhado por todo o lado". "Tinha dores muito intensas na altura da menstruação, mas os médicos diziam que era normal, e a sociedade leva-nos a acreditar que nós é que somos menos tolerantes do que o resto das mulheres", conta ao DN.
Passados quatro anos, quando já se encontrava a tomar a pílula contínua, foi-lhe diagnosticado um quisto, que obrigou a retirar um ovário e a trompa. Devido aos efeitos secundários e ao facto de querer ser mãe, Vânia desistiu de tomar o contracetivo oral. "Recuso-me. A pílula contínua pode ajudar a controlar os sintomas, mas não trata nada", refere, acrescentando que costuma recorrer a algumas "mezinhas". "Tenho dores. Todos os dias. Não são dores menstruais normais. É falta de qualidade de vida", sublinha. Procura ser o mais resiliente que consegue. "Não quero que a doença me vença. No dia em que me entregar, posso não ter energia para voltar a viver o dia a dia como vivia", refere.
Para Vânia, há uma teoria - a das colheres - que explica bem o que estas mulheres sentem: "Todos os dias quando acordamos temos 15 colheres de energia para gastar. Mas uma mulher com endometriose só tem cinco, portanto temos de escolher bem onde as queremos gastar". Ir jantar com amigos ou ao cinema "pode não ser comportável, porque já gastámos as colheres de energia" para aquele dia. Ter endometriose "não é só ter dores e uma vida mais difícil". É uma doença com impacto a nível sociológico. "Somos o amigo que está sempre a dizer que não vai. E as pessoas não compreendem".
Filipa Osório confirma: "São dores incapacitantes, que interferem com a qualidade de vida, com a vida familiar e com a vida dos casais". Existem várias teorias sobre as causas da endometriose, mas, segundo a ginecologista, nenhuma explica totalmente a doença. "O mais consensual é que estas mulheres têm um sistema imunitário mais deprimido, predisposição genética para a sua ocorrência e com fatores como stresse e alimentação, acabam por aparecer as lesões", explica a especialista do Hospital da Luz.