Dragagens no Porto de Setúbal. Embarcações maiores põem em perigo os golfinhos do Sado?
O ponto mais alto da Serra da Arrábida, na margem do rio Sado, em Setúbal, tem 501 metros. Esta é aproximadamente a profundidade das escavações planeadas para o fundo do rio Sado, junto ao Porto de Setúbal, aprovadas pelo Governo. Obra esta que pode causar danos irreversíveis no ecossistema setubalense.
As associações ambientais Zero, Quercus, Liga para a Proteção da Natureza, Clube da Arrábida, Sado de Luto, SOS Sado e cidadãos anónimos vão juntar-se este sábado, dia 13, no jardim Luís da Fonseca, em Setúbal, pelas 16h00. O encontro serve para "chamar a atenção de todos os cidadãos, sobretudo de decisores políticos, para o atentado que se está a planear contra o rio [Sado]", explica Pedro Vieira, presidente do grupo ambientalista Clube da Arrábida.
Em causa está a requalificação do Porto de Setúbal, iniciada no dia 1 de outubro, como previsto, promovida pela administração do próprio porto e pelo Governo. O investimento de 25 milhões de euros tem como objetivo alargar o canal marítimo de acesso ao porto, permitindo assim a passagem de embarcações de maior calado e se necessário mais do que uma em simultâneo. É a transformação de um porto de recreio numa autoestrada marítima para navios que transportam contentores.
Para realizar esta obra serão feitas dragagens - escavações no fundo do rio -, em duas fases, que retirarão ao Sado quase 6,5 milhões de metros cúbicos de areia, segundo a Declaração de Impacte Ambiental do projeto.
Estas escavações levantam duvidas ambientais por causa do excessivo volume de areia que será retirado. O próprio parecer da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) revela que viabiliza o processo "Melhoria da Acessibilidade Marítima ao Porto de Setúbal" pela sua rentabilidade económica e alerta para os riscos ambientais elevados.
"Considerou-se que o fator determinante nesta avaliação é a Socioeconomia, e que a Geologia e Geomorfologia e a Hidrodinâmica, a Ecologia, os Recursos Marinhos, o Património e a Paisagem são fatores relevantes", pode ler-se no relatório da APA.
"Os estuários são os ecossistemas mais produtivos do planeta e são muito importantes do ponto de vista da própria atividade económica do mar. Os estuários não são vocacionados para serem portos de águas fundas", indica o presidente da associação ambientalista Zero, Francisco Ferreira.
A Declaração de Impacte Ambiental (DIA) e as associações ambientalistas ouvidas pelo DN chamam a atenção para vários riscos:
Desaparecimento das espécies marítimas do Sado. A colónia de golfinhos do Sado já só tem cerca de 28 cetáceos, segundo o presidente do Clube da Arrábida. E há uma forte possibilidade de estes abandonarem a paisagem quando as dragagens começarem. O DIA refere que as obras podem não comprometer a sobrevivência dos golfinhos, mas podem "mascarar os sons gerados por potenciais presas", o que dificultaria a forma como arranjam alimento. É ainda descrito o caso de dragagens recentes no Porto de Aberdeen, na Escócia, onde uma comunidade de golfinhos da mesma espécie que habita o Sado "alterou o seu comportamento evitando a região por várias semanas".
E não são só os golfinhos que podem deixar este estuário. A mudança no fundo do rio destruirá vegetação, da qual muitas populações marinhas são dependentes. Estão ainda em risco várias pradarias marítimas, o berço de muitas espécies.
Impacto negativo nas profissões ligadas ao rio e afastamento de turistas, uma das grandes apostas da região. Se os peixes abandonarem o estuário, ficarão também em riscos as profissões ligadas à exploração daquele local. Para além da mudança na paisagem, que atrai tantos turistas e que pode estar causa, discutem-se as "repercussões sociais nas atividades da pesca profissional, artesanal e costeira com peso significativo no tecido económico da cidade de Setúbal".
Diminuição da quantidade de areia nas praias da Arrábida. As associações ambientalistas estão ainda preocupadas com a relação entre as dragagens e o desaparecimento de areia das praias. O Laboratório Nacional de Energia e Geologia, num estudo realizado em 2017 sobre a Praia do Portinho da Arrábida, não colocou de lado a hipótese das dragagens feitas na barragem do rio Sado terem contribuído para a redução do areal da praia, que diminuiu 63%.
Há ainda riscos a longo prazo por calcular. "Os problemas não vão ser imediatos, acontecerão durante as próximas décadas. Agora vão desaparecer os golfinho e a areia das praias, mas daqui a uns anos vamos estar a colocar pedras nas praias, como aconteceu no Portinho da Arrábida, e aí vamos lembrarmo-nos do que está a acontecer agora", prevê Francisco Ferreira.
Tanto a Zero, como a Quercus e o Clube da Arrábida acreditam que a obra deveria ter sido melhor planeada e que tinham de ter sido feitos mais estudos ambientais. Não é a primeira vez que acontecem dragagens na zona, mas estas ultrapassaram largamente os valores anteriores.
"As dragagens de manutenção são 100 mil metros cúbicos por ano e nós estamos a falar de 6,4 milhões de metros cúbicos. É uma escala completamente diferente", justifica o presidente da Zero, Francisco Ferreira.
"Nós não estamos totalmente contra as dragagens. A questão é que pode ser criada uma situação de prejuízos ambientais tão grave que depois já não será reversível. Não é tapar um buraco ou por alcatrão numa estrada que ficou mal feita. O que se está ali a fazer é uma autoestrada com quatro vias quando podem ser precisas apenas duas, porque não há tantos carros", defende o presidente do núcleo de Setúbal da Quercus, Paulo do Carmo.
"Se calhar é possível fazer isto retirando menos areia. Para que o ambiente não seja esmagado pelo valor económico. Setúbal está classificado como tendo algumas das mais belas baías do mundo e vai passar a ser uma baía de contentores do futuro? Não queremos que Setúbal seja Sines", acrescenta.
O presidente da Zero diz que isto teria sido evitado se tivessem sido feitos os estudos que "só fazem parte do pacote de medidas que o próprio plano ambiental prevê para o futuro".
A associação ambiental Clube da Arrábida foi mais longe e levou o caso à justiça. Entregou, a 14 de setembro, uma providência cautelar para travar as dragagens ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
A responsável pelo Porto de Setúbal, Lídia Sequeira, não entende a posição destas associações. Indica que os trabalhos começaram a ser preparados há dois anos e meio, que foram realizados todos os estudos ambientais obrigatórios e que foi pedido um parecer às organizações Zero e Quercus, que não terão respondido.
"O lucro não é a questão principal. A nossa grande preocupação é sermos uma empresa sustentável", explica Lídia Sequeira.
"Neste momento o Porto [de Setúbal] não tem condições para receber navios com a uma dimensão normal e o canal não tem condições para fazer o cruzamento de navios. Isto [a obra] vai favorecer os operadores turísticos e comerciais", continua.
Confrontada com os riscos ambientais enumerados anteriormente, a presidente da Administração do Porto de Setúbal negou a possibilidade das consequências serem reais. "Há quatro anos e meio que o Porto de Setúbal não faz uma dragagem. E, neste momento, se for ver determinadas praias em Setúbal estão de facto a ser vitimas de uma grande erosão costeira. Não podem é dizer que são das dragagens, porque não tem havido", diz.
Quanto à hipótese da obra poder afastar a comunidade de golfinhos do Sado, Lígia Sequeira refere: "Não há nenhum especialista neste país que lhe diga que eles [golfinhos] são afetados por estas obras. Este é um processo muito grande, que vai desde a barra até aos terminais portuários. A obra faz-se naquele espaço-canal. E os golfinhos convivem regularmente com um conjunto de barcos a motor, que têm ruído, e não têm desaparecido. A draga, porque é só uma, não tem o ruído de um barco a motor".
O DN contactou o Ministério do Mar, responsável por esta obra, a posição do Governo. O ministério encaminhou o seu esclarecimento para a Administração do Porto de Setúbal. O DN tentou ainda entender o posicionamento da Câmara Municipal de Setúbal, que se recusou a responder às nossas perguntas e indicou que a Presidente da Câmara deu uma entrevista recentemente ao jornal Setubalense (apenas em versão impressa).
Nesta entrevista, Dores Meira, a presidente da câmara, diz que acredita no alargamento do canal portuário e em todos os estudos ambientais que foram feitos. Considera ainda que quem se manifesta contra a obra são "os mesmos que fizeram aquela arruaçada toda em relação à Arrábida sem carros".
O deputado do PAN, André Silva, pediu na quarta-feira, dia 10, a suspensão do projeto durante o debate quinzenal na Assembleia da República (AR). "É sempre o dinheiro. Estas dragagens não estão sustentadas do ponto de vista científico. Estamos perante um problema político", disse.
Em resposta ao deputado, o primeiro-ministro, António Costa, recusou a ideia de parar a obra, defendendo-se com o parecer positivo dado pela Agência Portuguesa do Ambiente.
O assunto pode ainda voltar a ser mencionado em plenário na AR, uma vez que a petição pública criada pelo movimento SOS Sado já reuniu mais de 4600 assinaturas, mais 600 do que é necessário para que os deputados tenham de debater o tema. Não seria a primeira vez que se assistia a um recuo.
O impacto ambiental do projeto para o novo Terminal de Contentores do Barreiro foi reavaliado este verão, depois da Câmara do Barreiro e associações ambientais terem defendido que a construção poderia prejudicar a marginal do concelho. A Administração do Porto de Lisboa acabou por pedir uma nova avaliação do projeto e este foi reformulado. A localização alterou-se; a obra vai deslocar-se um pouco dentro do mesmo espaço para não ter tanto impacto na área nova e urbana do Barreiro.
"Se é possível tomar estas decisões, e foram tomadas recentemente, então se calhar também podem ser tomadas em relação a Setúbal", lembra o presidente da Zero.