Morreu Nelson Traquina, professor que marcou gerações de jornalistas

Por ele passaram, no curso de Comunicação Social da Nova, inúmeros estudantes que hoje são jornalistas no ativo. Filho de açorianos, nasceu nos EUA e doutorou-se em Paris. Foi repórter e depois professor.
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Com 71 anos acabados de fazer, no passado dia 17 de setembro, Nelson Traquina morreu nos EUA (Massachusetts), vítima de ataque cardíaco. Nasceu nos EUA em 17 de setembro de 1948, filho de pais açorianos. Tinha portanto dupla nacionalidade: luso-americano. E um sotaque misturando o português e o inglês da América que ninguém que o conheceu se esquece.

Traquina chegou a Portugal em 1974, como jornalista ao serviço de uma agência norte-americana de notícias, a UPI (United Press International). Depois, na universidade, tendo no currículo um doutoramento em Paris (Sorbonne), pôs ao serviço do ensino toda a sua experiência prática do exercício do jornalismo.

A Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova já emitiu uma nota de homenagem. Nelson Traquina foi, por exemplo, o principal autor de uma grande análise do tratamento jornalístico da Sida em Portugal, estudo no qual colaboraram vários dos seus alunos. "Foi o primeiro académico português a sistematizar um pensamento sobre a estrutura política das notícias como bens simbólicos e a conceber o jornalismo simultaneamente como uma prática profissional e um campo de estudos e reflexão", lê-se na nota da FCSH.

Catarina Carvalho, diretora executiva do DN, que foi sua aluna na Nova nos anos 90 do século passado, diz: "Com Nelson Traquina tivemos os primeiros vislumbres do que era o jornalismo na FCSH da Nova. Ele tinha uma maneira muito teatral de dar aulas, o que provocava por vezes risos - mas, olhando à distância, foi quem nos transmitiu a emoção e o valor do jornalismo para a sociedade. Havia uma frase que ele dizia, de que quase todos os dias me lembro, no dia a dia da profissão. 'A importância do factor Tempoooo"', dizia o professor Traquina, prolongando os ooo finais. Tão verdade no jornalismo. Tão a base do jornalismo. Na cadeira dele fiz a minha primeira reportagem sobre os faróis de Portugal."

Dora Santos Silva, professora na FCSH de uma das cadeiras que foi de Traquina (Teoria de Notícia), recordou ao DN a sua "enorme paixão dele pelo jornalismo". "Se escolhi este curso foi por razões mais egoístas, porque gostava muito de escrever. Com ele apercebi-me de que o jornalismo era um serviço para os outros e de uma grande responsabilidade."

Uma outra professora do curso de Comunicação Social da FCSH, Marisa Torres da Silva, considerou, num depoimento ao DN, que Nelson Traquina "é a maior referência dos estudos de jornalismo em Portugal". "Foi o primeiro e principal construtor da abordagem teórica ao jornalismo no nosso país. Tudo o que criou servirá de base às atuais e futuras gerações de jornalistas, investigadores e docentes na área de estudos dos media e jornalismo."

Eunice Lourenço, chefe de redação e editora de Política da Rádio Renascença, foi também aluna de Traquina, na primeira metade dos anos 90 do século passado.

Segundo recorda ao DN, ainda hoje usa expressões que o professor usava nas aulas, "com aquele seu sotaque entre o açoriano e o homem do mundo que estudou em inglês e se doutorou em França": "As avantages e desavantages de ser jornalista", "o jornalismo não é uma profession, é uma vocation", "o jornalismo está no sangue". "Quantas vezes, quando começo a escrever ou a rever uma noticia, me lembro do seu 'lead diz nada, lead diz nada".

"Com ele comecei a ler Chomsky, soube o que era o new journalism, aprendi que técnicas usava o Truman Capote. E percebi uma coisa muito importante que tantas vezes relembro: as nossas primeiras fontes são a família, os amigos, os vizinhos. Quando esquecemos isso desligamos do mundo real, das coisas que interessam às pessoas e são faladas ao jantar ou, nos dias de hoje, nas redes sociais."

Recordando: "Havia quem gostasse, quem gostasse mesmo muito daquele professor que nos ensinava a escrever notícias com o seu linguajar do mundo. Mas também havia quem não suportasse a figura e creio que, mesmo os que não gostavam, ainda hoje se lembram do que aprenderam com ele. 'Mata gerúndio, mata gerúndio', repetia, enquanto entregava textos riscados."

"Para ele - recorda ainda - os jornalistas eram uma 'comunidade interpretativa' transnacional, uma tribo que se entende entre si, que partilha uma linguagem, um conjunto de valores e toda uma cultura profissional que foi ganhando, devido às suas representações na literatura e no cinema, uma dimensão quase mítica."

Mas isto, também, "apesar de, como tantas vezes nos lembrava nas aulas, fazermos um trabalho que, no dia seguinte, servia para embrulhar o peixe".

[Notícia atualizada às 15h15. Nelson Traquina morreu nos EUA e não em Lisboa, como por erro o DN noticiou.]

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