Conflito sobre vacina em organização científica resulta em expulsão
Um conflito interno na organização científica internacional Cochrane, que produz revisões independentes sobre práticas e terapias médicas, resultou na expulsão, em setembro, de um dos seus cofundadores, Peter Gøtzsche, que era diretor do centro Cochrane em Copenhaga e um dos membros da própria direção internacional da organização.
O inédito desfecho, cujas causas não estão ainda totalmente esclarecidas, acabou por culminar numa sequência de acusações e contra-acusações a propósito de uma análise publicada em maio pela Cochrane sobre a eficácia e segurança da vacina contra o Vírus do Papiloma Humano (HPV). Esta vacina faz atualmente parte dos planos nacionais de vacinação de 89 países, incluindo Portugal.
O facto de o conflito no interior da Cochrane ter ocorrido na sequência da publicação daquela revisão científica levanta, no entanto, receios de um eventual impacto negativo na opinião pública em relação à vacina, numa altura em que os movimentos antivacinação estão a ganhar expressão.
"Temo que possa haver um impacto negativo na opinião pública e que isto possa ser mais uma acha para a fogueira do movimento antivacinação", admite o médico e diretor da Cochrane Portugal, António Vaz Carneiro, que diz desconhecer para já quaisquer efeitos nesse sentido. "Não temos dados que nos indiquem isso", sublinha.
Para o diretor da organização em Portugal, "não há ainda informação suficiente" sobre o que determinou a expulsão de Peter Gøtzsche da Cochrane, decidida pela maioria dos membros da direção internacional - quatro deles, que votaram contra a expulsão, acabaram por se demitir. António Vaz Carneiro afirma por isso que aguarda "com tranquilidade" o desenrolar da situação.
Numa posição tomada em conjunto com a Rede Iberoamericana da organização, na qual está integrada, e que pode ler-se na sua homepage, a Cochrane Portugal "reafirma a sua confiança" na organização, que considera "singularmente prestigiada".
"É uma organização científica com mais de 32 mil pessoas em todo o mundo, na sua maior parte universitários, e todos voluntários, que produz revisões sistemáticas sobre tratamentos médicos e disponibiliza de forma aberta", explica António Vaz Carneiro, sublinhando que a organização "está em crescimento e vai agora iniciar também estas revisões sistemáticas na área dos diagnósticos".
A revisão que foi publicada em maio sobre a vacina HPV na Cochrane iLibrary confirmava a eficácia da vacina na prevenção do cancro do colo do útero. Considerando um total de 26 estudos, envolvendo mais 73,4 mil mulheres, a maioria com menos de 26 anos, os revisores referiam também que os riscos da vacina eram idênticos aos de uma vacina-placebo que tinha sido usada para comparação.
Peter Gøtzsche e outros dois colegas decidiram contestar estes resultados e terá sido a forma como o fizeram, recorrendo a uma contra-publicação numa revista científica externa, a BMJ EBM, que acelerou o conflito. Nesse artigo os três investigadores afirmavam que a revisão dos peritos da Cochrane não tinha levado em consideração um conjunto de 20 estudos que, segundo eles, teriam conduzido a conclusões diferentes. Não especificou, no entanto, quais.
Em resposta, um grupo de peritos da organização passou em revista eventuais estudos não incluídos na revisão original, encontrou cinco, mas acabou por concluir que a sua inclusão não teria alterado o resultado final. Só que as coisas acabaram por azedar, até à decisão da expulsão de Gøtzsche.
António Vaz Carneiro considera que "a expulsão é um episódio infeliz" e que Peter Gøtzsche, que "é um profissional sério, terá exagerado, ao levar a discussão para a praça pública. Se tinha dúvidas, devia ter apresentado os seus argumentos na Cochrane, fazer uma outra revisão e apresentá-la, mas não foi isso que fez".