Catarina está em morte cerebral mas ainda lhe falta uma maratona
Canoísta, com vários títulos nos escalões jovens, entrou em morte cerebral a seguir ao Natal. Estava grávida de 12 semanas. Médicos mantiveram-na viva. Bebé, prematuro extremo, vai nascer nesta semana, no Porto
Catarina Sequeira "tinha brio. Ou fazia a sério ou então não valia a pena". Quando era pequena, "sonhava ser uma atleta de velocidade na canoagem". Mas o "peso e as medidas" do seu corpo franzino, apesar de alguns primeiros resultados promissores, "não davam" para ser competitiva. Por isso, reconverteu-se à disciplina de maratona, "remando 30 quilómetros por prova", acabando a representar Portugal em europeus e mundiais da modalidade, recorda José Cunha, treinador que a acompanhou durante toda a carreira, primeiro no Clube Náutico de Crestuma (CNC) e depois no Douro Canoa Clube - do qual foi fundadora, com outros canoístas, e para o qual ajudou a convencê-lo a mudar-se.
Afastou-se da competição em 2014, quando a vida profissional começou a impedi-la de repetir os resultados a que se tinha habituado: 41 medalhas, 17 delas de ouro, em várias categorias, dos infantis aos seniores."Ela queria o alto nível, não pretendia a mediocridade" Nos últimos anos, pouco souberam da antiga atleta. E foi através de um irmão gémeo, do qual era "muito próxima", que chegou a notícia que deixou todos perplexos no Douro Canoa Clube.
Nunca tinha deixado que a asma, doença que a acompanhava desde a infância, lhe atrapalhasse os sonhos. Mas em dezembro, por altura do Natal, um ataque agudo revelou-se demasiado forte, mesmo para a combativa mulher de 27 anos. Apesar de todos os esforços dos médicos, entrou em morte cerebral.
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Em competição
© D.R.
Uma última prova
Clinicamente, Catarina estava morta. Mas o seu corpo tinha ainda uma última maratona para superar. Grávida de doze semanas, foi mantida em suporte de vida para dar ao feto a oportunidade de se desenvolver. Nesta semana, em dia que o Centro Hospitalar de S. João, no Porto, preferiu não revelar, remetendo todos os esclarecimentos para "depois do nascimento da criança", virá ao mundo o seu filho Salvador.
Tal como a mãe, pela qual poucos apostariam quando - "pequena, uma miúda frágil" - começou a dar as primeiras remadas no Douro, o bebé tem uma montanha para escalar. Com pouco mais de 25 semanas de gestação, será o que os clínicos descrevem como um prematuro extremo. Tem pouco mais de uma semana para além do patamar mínimo em que é considerado haver viabilidade.
Em 2016, no Hospital de S. José, nasceu outro "bebé milagre", filho de uma mulher que estava em morte cerebral. Mas nesse caso os médicos conseguiram prolongar a gravidez até às 32 semanas.
Um dia a mais pode fazer a diferença
Embora o Hospital de São João não avance explicações para a decisão de realizar já o parto de Salvador, para Maria do Céu Machado, pediatra e membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, só um motivo poderá justificar essa atitude: o corpo de Catarina já não estará a conseguir dar resposta às necessidades do seu bebé.
"Entre as 24 e as 28 semanas, obviamente tem mais risco de morte e maior risco de tirar [do útero]. Se estão a falar em tirar, provavelmente é para defender o bebé", diz. "Provavelmente, o meio ambiente em que ele está é mais agressivo do que numa incubadora".
Nesta fase, explica a pediatra, todo o tempo faz diferença. "Não é a cada semana: é a cada dia. Um dia a mais é extremamente importante, em aspetos como o desenvolvimento do cérebro. Vinte e cinco semanas e seis dias é completamente diferente de 25 semanas".
Mas uma grávida em morte cerebral coloca desafios acrescidos. Nomeadamente para "manter a homeostasia - o que chamamos de equilíbrio eletrolítico -, a oxigenação adequada, todas as condições necessárias para o desenvolvimento do bebé", explica, apontando também uma infeção como outro possível motivo para a decisão de fazer o parto. "Se está a haver dificuldade em manter esse equilíbrio, isso pode prejudicar a saúde do bebé e, no limite, é preferível que ele esteja cá fora".
Os cuidados com o bebé, partindo do princípio de que a evolução da gestação tem sido normal até agora, não serão diferentes dos que se tem com outros prematuros: "Deverá ir para uma incubadora, para os cuidados intensivos, ligado a um ventilador. Nesta fase é fundamental melhorar a maturidade pulmonária. Isso faz-se com corticoides administrados à mãe, 24 a 48 horas antes do parto, para o pulmão estar mais maduro e ser mais fácil ventilar".
Com o nascimento do filho, a última prova de Catarina deverá chegar ao fim. "Se está em morte cerebral, é eticamente aceitável interromper os cuidados".
Um precedente histórico
Quanto às implicações de manter uma pessoa viva, na esperança de viabilizar uma nova vida, a experiência que existe em Portugal - e não há muitos outros casos análogos no mundo - é a que ficou da decisão tomada em 2016 pela Comissão de Ética do Hospital de São José, no caso do outro "Salvador" que viria a nascer nesse ano.
Na altura, os clínicos consideraram que não estavam reunidas as condições previstas na lei relativamente à interrupção voluntária da gravidez - nomeadamente a vontade expressa da mãe, até às dez semanas, o risco grave para a saúde da mesma, até às 12 semanas, ou a inviabilidade do feto - e decidiam manter Sandra ligada às máquinas.
O hospital chegou a pedir ao Ministério Público proteção para o feto, com o estatuto de "bem jurídico". No entanto a gravidez acabou por avançar pacificamente, com o acordo de todas as partes, nomeadamente dos familiares da mulher.