Luca Badetti: "Não nos podemos esquecer que todos nós poderemos adquirir deficiências"
Em quem acreditamos? Em quem confiamos? Em nós próprios? Nos outros? Sabemos viver desta maneira? De entrega profunda ao outro, com o outro e até com a nossa própria identidade e com o nosso corpo? Sabemos viver sem máscaras, sem projeções e sem expectativas? Apenas com o que de mais humano tem cada um de nós? Sabemos viver de forma autêntica, genuína, verdadeira e livre? Perguntas que certamente muitos já fizeram a si próprios e até aos outros. Mas, e depois? Descobriram respostas, filosofias e novas formas de vida?
Luca Badetti - doutorado em estudos sobre deficiência, diretor de vida da comunidade A Arca, em Chicago, EUA, professor no Instituto de Estudos Pastorais da Universidade de Loyola e no programa de Paz, Justiça e Estudos de Conflitos da Universidade De Paul - vem a Portugal explicar como descobriu essa forma de vida. E descobriu-a na vivência diária com pessoas com deficiência intelectual, pessoas que a sociedade e tantos de nós ainda marginalizamos porque não sabemos acolher.
Para Badetti, estas são as pessoas que menos se escondem e que de forma mais autêntica nos tocam. Por isso defende que a inclusão é um problema de todos. O diretor de A Arca está em Portugal para apresentar a sua descoberta, as suas reflexões e vivências - que traduziu num livro com o título I Believe in You (Acredito em Ti) - na Universidade Católica, no dia 14, pelas 18.00. A obra, com base em histórias de vida de pessoas com deficiência, terá a apresentação do enfermeiro Tiago Casaleiro.
Ao DN, Luca Badetti explica o que o levou a esta obra e deixa uma mensagem aos portugueses: que cada um faça uma caminhada pessoal inclusiva de aceitação e transformação.
Porque escolheu o título I Believe in You?
Porque foram as palavras que Jennifer, uma amiga com síndrome de Down, me dirigiu, que escolheu para mim. E decidi que estas palavras deviam ser o título do livro. Conto como estas palavras sugiram: uma noite, depois de um evento, estava sentado junto a Jennifer, que é uma pessoa muito espiritual e amistosa. Eu, que vivia uma fase de dúvida em relação à minha fé, estava a conversar com ela e disse-lhe: "Sabes, eu acredito em Deus, mas..." Ela olhou para mim e por cima dos óculos diz-me: "Eu acredito em ti, acredito em ti." Em vez de me dar uma resposta abstrata sobre as minhas dúvidas, disse-me que acreditava em mim. Mostrou-me que o nosso lado espiritual está escondido na nossa humanidade. As palavras "acredito em ti" encorajaram-me a explorar e a tentar descobrir o que significa verdadeiramente acreditar em nós próprios e nos outros. Neste mundo tão dividido, afinal em quem podemos confiar, em quem podemos confiar a nossa grandiosidade para nos libertarmos? Esta é uma das questões que abordo no livro, daí ter escolhido estas palavras para o título.
No livro que conta várias histórias de pessoas com deficiência intelectual, há alguma que o tenha tocado mais?
Durante muitos anos fiz parte da comunidade A Arca, que integra pessoas com e sem deficiências intelectuais mas que vivem juntas e num espírito grande de inclusão. Neste momento, trabalho como consultor d'A Arca, em Chicago, mas enquanto estive n'A Arca vivi em casas comunitárias com pessoas com deficiências. Uma noite, quando regressava de um período de férias, um desses colegas recebeu-me com um abraço e perguntou-me, com a sua voz rouca: "Sentiste a minha falta?" Pode não parecer, mas é mais fácil dizer a alguém que "senti a tua falta" do que perguntar "sentiste a minha falta". Esta pergunta, tão vulnerável e genuína, ajudou-me a perceber melhor como de facto estamos interdependentes uns dos outros, como estamos ligados uns aos outros. Isto significa que os relacionamentos nascem e sobrevivem no coração do ser humano. O coração é o núcleo central. Aprendi muito enquanto estudava Psicologia Clínica, Teologia e Estudos da Incapacidade, mas a pergunta "sentiste a minha falta?" provavelmente ensinou-me muito mais do que todas as investigações que me deram graus universitários.
No prefácio do livro, o fundador d´A Arca, Jean Vanier, afirma que as pessoas com deficiências intelectuais podem ensinar-nos a ser mais humanos. Pode explicar melhor como é que isto é possível?
Falando da minha experiência e das pessoas que conheço com deficiências intelectuais, e sem generalizar, penso que estas pessoas escondem-se menos, escondem-se menos nos seus pensamentos e nos seus sentimentos do que a população em geral. Elas podem ajudar-nos verdadeiramente a procurar o caminho do coração, que é o núcleo do ser humano. Não são os pensamentos ou as filosofias inteligentes, ou até as abstrações intelectuais fantasiosas, que "nos irão salvar". É o coração, é vivendo com o coração.
O que pretende dizer à sociedade com este livro?
Que acreditar significa confiar. E isso é fundamentado no livro através da psicologia, da espiritualidade e das reflexões que surgiram das histórias vividas na comunidade A Arca com pessoas com deficiência. Esta obra é um convite para que as pessoas reivindiquem a confiança em si próprias, para que recuperem a confiança na sua grandiosidade e humanidade, mas também nos outros. Espero provar que desta forma será possível alcançar-se a libertação que se deseja. O livro está dividido em duas partes. A primeira é sobre acreditar em nós próprios, sobre como deixar soltar as nossas máscaras, sobre como é possível sentirmo-nos confortáveis no próprio corpo e reconciliados com a nossa história e com a nossa vida. É sobre um caminho de aprendizagem interior, para que este interior seja o lugar onde poderemos sempre encontrar algum consolo. A segunda parte é sobre o acreditar nos outros. Os tópicos que abordo estão associados à forma como se pode olhar para o outro, como se deve olhar para o outro como um mistério. É o encontrar o outro, verdadeiramente, nas suas próprias margens ou periferias, para celebrarmos juntos a humanidade.
A sociedade atual ainda não está preparada para acolher pessoas com deficiência?
As pessoas com deficiências têm sido marginalizadas e oprimidas por muitos aspetos da vida social, senão por todos. Os movimentos de apoio e de defesa dos direitos das pessoas com deficiências têm feito um importante trabalho, ajudando a que se fale mais do tema e que este ganhe outra força. É importante reconhecer que quando falamos de inclusão é preciso que olhemos todos para esta questão. É preciso estarmos todos juntos nesta matéria. Quando se fala de inclusão, não se fala de uma guerra "entre nós e eles". Fala-se da partilha de uma humanidade que é comum, quer tenhamos ou não deficiências. E se uma pessoa com deficiência continua a ser marginalizada e oprimida, então esse problema também é nosso. É de toda a sociedade. Não nos podemos esquecer que todos nós, em qualquer momento da vida, por qualquer motivo, poderemos adquirir deficiências, muitas vezes até com o envelhecimento. Por isso digo que os problemas da deficiência são problemas de todos, atingem-nos de uma forma ou de outra.
O que acha que é preciso ser feito pela sociedade para se melhorar a vida das pessoas com deficiências ou para as acolher melhor?
Há muita coisa que ainda precisa de ser feita, sobretudo em relação à inclusão e às acessibilidades. Mas não podemos esquecer algo que deve estar sempre presente como uma prioridade, que é o encontro com estas pessoas e o relacionamento com elas. É muito importante conhecer pessoas com deficiência, ouvir as suas histórias, o que querem e o que desejam da vida. E para isto é preciso saber criar espaço, espaço para o relacionamento e para os ouvir. A inclusão não é apenas algo que um grupo faz pelo outro. As pessoas com deficiência ajudam-nos a perceber o que a inclusão significa para elas. Vamos ouvi-las! Foram rejeitadas tantas vezes que é bom que falem, seja verbalmente ou não.
É professor no Instituto de Estudos Pastorais da Universidade de Loyola, nos EUA. A Igreja Católica tem sabido lidar e incluir as pessoas com deficiência? O que poderá fazer mais?
A Igreja Católica e as comunidades cristãs têm feito muito para proteger e ajudar pessoas com deficiência. No entanto, às vezes pode haver um sentimento excessivo de pena, como se estas pessoas fossem apenas pobres e só precisassem da nossa ajuda. Não pode ser. É preciso que todos, deficientes ou não, consigamos descobrir o significado do que é ser-se humano, não com pena, mas com a alegria e saber que, apesar das nossas capacidades e incapacidades, podemos partilhar uma humanidade que pode estar quebrada, mas que também tem muito de bom.
Que mensagem gostaria de deixar à sociedade portuguesa?
É a primeira vez que estou em Portugal, mas ao longo dos tempos tenho notado uma qualidade, uma característica muito fascinante nos portugueses, que é um espírito particular de abertura à amizade e de profunda reflexão sobre os problemas. Essas qualidades podem ajudar as pessoas a aceitar e a celebrar quem são, ao mesmo tempo que sabem acolher bem os outros. A minha mensagem vai no sentido de lançar um alerta, um incentivo, a todos os portugueses, a cada leitor, para que acreditem em si próprios e nos outros, e que saboreiem a liberdade que isso lhes dá.