150 km para tratar um cancro. "Quem mora longe sente as coisas com outra dimensão"
Tatiana Nunes, 22 anos, fez durante um ano viagens de ida e volta entre Tomar e Lisboa para se tratar de um linfoma de Hodgkin. São cerca de 300 quilómetros no total, viagem que chegava a demorar quatro horas, dependendo do trânsito. E se a ida era relativamente tranquila, o regresso obrigava a muitas paragens por causa da má disposição provocada pela quimioterapia e depois pela radioterapia.
Ficar em Lisboa? "Nunca colocámos isso em hipótese. Já estávamos a gastar muito dinheiro no combustível. Ficar não dava mesmo", diz. Teria sido "fundamental" que a casa "Porto Seguro" já existisse. O projeto - o primeiro do género em Portugal - foi idealizado pela Associação Portuguesa Contra a Leucemia (APCL) e pretende ser um espaço onde doentes hemato oncológicos deslocados para fazer tratamentos podem ficar com os seus familiares. O espaço físico já existe, mas precisa de muitas obras. Para angariar dinheiro para a remodelação os cantores Ana Bacalhau, Tim, Sofia Escobar, Paulo de Carvalho, Gisela João, Carlão juntam-se à Orquestra Promenade num concerto, esta quarta-feira à noite (21:15), no Campo Pequeno, em Lisboa.
Em Portugal, existem apenas quatro centros de transplantação oncológicos em três cidades: o Hospital de Santa Maria e o Instituto Português de Oncologia (IPO), em Lisboa, o IPO do Porto e o IPO de Coimbra, "mas os doentes não são só destas três cidades. São de todo o lado, das ilhas e até de países de expressão portuguesa, nomeadamente, dos países africanos e chegam sem recursos", explica o vice presidente da APCL, Carlos Horta e Costa.
"Assisti a familiares que ficavam a dormir no carro no parque de estacionamento do IPO de Lisboa. Lembro-me de outra pessoa que ia e vinha todos os dias do Alentejo, porque não tinha dinheiro para ficar", recorda Carlos Horta e Costa do tempo que também ele passou como doente neste hospital há 26 anos. "E agora conheço o caso de um rapaz que vive no Porto, mas como não tinha lugar no IPO do Porto para ser tratado, vem para Lisboa. Levanta-se às 4:00 e vem de ambulância com a mulher".
O tratamento envolve um dia inteiro. É preciso fazer análises, ir à consulta mostrar os resultados e só depois se iniciam os tratamentos, que duram cerca de três horas, na melhor das hipóteses. "Isto pode acontecer a qualquer um, mas realmente quem mora longe sente as coisas com outra dimensão. Eu tinha de ir Lisboa fazer tudo: exames, falar com uma psicóloga focada nestes casos, quimioterapia, radioterapia", conta Tatiana Nunes.
A tomarense tinha 16 anos quando lhe foi diagnosticado um linfoma de Hodgkin. Foi a uma consulta ao hospital, porque andava novamente com dificuldades em respirar e o médico prescreveu-lhe um TAC. Dias depois, abriu o envelope com os resultados sozinha em casa: "No final estava escrito timoma ou linfoma. Fui à internet pesquisar o que era. Não vi as melhores coisas, porque há uma tendência para generalizar e agravar os casos."
A família ainda tentou dar-lhe outras definições para o que lhe estava a acontecer, mas ela percebeu que tinha cancro assim que chegou ao IPO de Lisboa, onde foi acompanhada. Foi mastigando a doença à medida que se ia tratando, nunca quis saber o que ia fazer a seguir "para não estar uma semana inteira a pensar nisso", não deixou a escola e quis continuar a estar com os amigos.
"Não me isolei. Claro que há aquela fase em que pensamos porque é que aquilo me está a acontecer a mim. E por isso precisei de sentir adrenalina, precisava de sentir que estava viva e que fazia as coisas das pessoas da minha idade, que não estava condicionada. Cheguei a fazer disparates por causa disso: uma vez fui à praia, apanhei sol e à noite estava com 40 graus de febre", conta Tatiana."E só enfrentei a doença quando fiquei careca. Eu fiquei doente quando perdi o cabelo".
Andava no 10.º ano, ia às aulas de manhã até ao 12:00 e depois seguia com a família para o IPO para os tratamentos, primeiro quimioterapia de quinze em quinze dias e depois radioterapia diariamente. A viagem de ida para a capital fazia com relativa facilidade, o regresso tornava-se mais complicado depois de ter estado a receber químicos durante três horas via intravenosa. "Ficava abalada. Na minha última sessão, fiquei parada à porta do hospital, porque os meus pais não me queria levar para casa. Estava ainda mais amarela e mal disposta do que o normal".
Na viagem de regresso vinha deitada no banco de trás e a família tinha de parar constantemente, porque Tatiana precisava de ir à casa de banho ou de recuperar da má disposição. "Parávamos em todas as áreas de serviço até Tomar para eu ir à casa de banho".
Tatiana, hoje em remissão e a trabalhar numa clínica de análises e exames, reconhece facilmente que passar a noite em Lisboa, acompanhada pela família e pela amiga Filipa que esteve presente em todas as fases do tratamento, teria sido "fundamental". Pelo menos durante a primeira noite, depois "quereria continuar a fazer a vida que levava em Tomar".
A casa "Porto Seguro" fica na rua Dom Luís de Noronha, em Lisboa, a sensivelmente cinco minutos a pé do Hospital de Santa Maria e do IPO. O prédio foi cedido pela Câmara Municipal de Lisboa por uma renda anual de 600 euros a partir do momento em que as obras estiverem concluídas e a casa a funcionar. O que Carlos Horta e Costa espera que aconteça durante o próximo ano.
O projeto arquitetónico está aprovado. A casa vai ter três andares: no rés de chão ficará a cozinha, a sala de jantar, a sala de estar e uma casa de banho e nos dois andares seguintes serão os quartos, no total oito, todos com casa de banho. Os doentes serão encaminhados pelas assistentes sociais de cada uma das unidades de saúde e poderão ficar o tempo que for necessário à recuperação.
"A doença já é difícil quer física quer psicologicamente. As pessoas sentem que podem ter a vida a prazo e andar para trás e para a frente numa ambulância cheias de enjoos não é a solução", diz o vice presidente da APCL.
O objetivo está próximo. Já angariaram 500 mil euros dos 600 mil que estimam serem necessários para as obras e para o recheio da habitação. E esta noite, com o concerto solidário no Campo Pequeno, o valor pode diminuir. O preço dos bilhetes varia entre os 30 e os 60 euros. Há ainda a possibilidade de ajudar através de uma transferência bancária para a conta indicada no site da associação ou ligando para a linha solidária (760 20 70 80).