Vítima de acórdão da "mulher adúltera" está "cansada disto tudo"
"É evidente que nenhum ser humano se pode conformar com isto. Mas se a vítima, que está muito desgastada e cansada disto tudo, tem a intenção de praticar mais algum ato judicial, desconheço, não tenho instruções nesse sentido." Erica Durães, advogada da mulher que o Tribunal da Relação do Porto apelidou de "adúltera" e "desonesta", invocando a Bíblia e o Código Penal de 1886, respondeu assim, ontem, à questão do DN sobre se a cliente tenciona reagir ao acórdão que chocou o país e é notícia em vários media estrangeiros, incluindo o britânico The Guardian, que frisa que "o patriarcado ultraortodoxo (...) ainda subsiste em algumas áreas da sociedade portuguesa".
O DN tentou contactar a visada no acórdão, mas esta, que já não recorrera da decisão da primeira instância - o recurso para a Relação foi intentado pelo MP - não respondeu às perguntas enviadas. A sua representante legal adianta, porém, que vai voltar a reunir-se com a cliente para apreciar as alternativas. Estas incluem um processo contra o Estado no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e uma queixa por difamação contra os juízes que assinaram o acórdão, Joaquim Neto de Moura e Luísa Arantes. Já a possibilidade de recurso para o Constitucional parece fora de questão: teria de ter lugar nos dez dias seguintes à notificação, vencidos ontem.
"O TC destruiria aquele acórdão, que é de alto a baixo inconstitucional", crê Jorge Reis Novais, constitucionalista. Se pudesse apreciá-lo. E não se trata apenas de um problema de extinção de prazo: de acordo com este professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, aquele tribunal não pode apreciar a constitucionalidade de decisões judiciais. "O nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade é um desastre. Só permite recorrer de normas, não de decisões. Só nós temos esta impossibilidade, porque em todos os outros sistemas se pode recorrer a esta instância para apreciação de decisões. Falo muito disto aos meus alunos. Costumo dizer-lhes que o sistema é tão absurdo que se um juiz condenasse alguém à morte e não houvesse recurso para instância superior, o TC não podia apreciar a decisão. Agora tenho um caso concreto para apresentar."
Águas de bacalhau?
Que pode então fazer-se, no sistema judicial português, perante um acórdão que em vez de se basear nas leis, na Constituição e nas convenções internacionais em vigor invoca, como atenuantes para a pena de dois homens que ameaçaram, sequestraram e agrediram uma mulher, o Velho Testamento da Bíblia e a sua prescrição de lapidação para as adúlteras, assim como o Código Penal de 1886 e a atenuação especial da pena para o homem que matasse a esposa que o tivesse traído (no máximo, seis meses de exílio da comarca), e diz que "a mulher adúltera" é execrada pelas "honestas"? Aparentemente, muito pouco. A vítima pode apresentar queixa-crime contra quem a difamou, aventa um juiz contactado pelo DN e que pede para não ser identificado. Processo que, por os autores do acórdão serem desembargadores, só podia ser apreciado no tribunal superior - o Supremo.
Resta, evidentemente, o recurso habitual para quem se sente injustiçado pelos tribunais portugueses: o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. O prazo de apresentação da queixa é de seis meses e as custas são grátis, frisa o juiz Ireneu Cabral Barreto, que representou Portugal naquela instituição até 2011. "As pessoas pensam que ir a Estrasburgo custa fortunas, mas só tem de se pagar os honorários do representante." E existe, lembra, precedente quanto à apreciação de considerações ofensivas numa decisão: no caso Salgueiro-Mouta, referente a regulação do poder paternal, Portugal foi condenado por isso mesmo. "A decisão pode estar correta tecnicamente, mas os fundamentos serem ofensivos, não conformes à convenção", explica. No caso, tratava-se de considerações sobre a homossexualidade do pai da criança em causa.
Mas, adverte Cabral Barreto, considerar ofensivos ou não conformes à Convenção fundamentos de uma decisão não significa que a decisão seja automaticamente anulada. Ou seja, o Estado pode ser condenado a indemnizar mas não haver anulação do acórdão. E sendo assim não é claro que o Estado possa requerer aos autores da decisão que indemnizem por sua vez a fazenda pública: "Tem de se considerar que houve dolo para que haja responsabilidade civil dos juízes por atos cometidos em funções."
E se a visada não tiver ânimo para demandas, podem algumas das associações de defesa dos direitos das mulheres que têm protestado contra o acórdão fazê-lo? O ex-juiz europeu acha que não: "Essa possibilidade existe para direitos difusos, como o direito ao ambiente. Creio que num caso como este só a vítima direta se poderá queixar."
Sendo as hipóteses da via judicial escassas, na disciplinar existe uma: o Conselho Superior da Magistratura (CSM), que tem o poder fiscalizador sobre os juízes. Este exarou anteontem um comunicado sobre o caso onde usa linguagem invulgarmente dura e explícita, sublinhando que as sentenças dos tribunais devem realizar "a justiça do caso concreto sem obediência ou expressão de posições ideológicas e filosóficas claramente contrastantes com o sentimento jurídico da sociedade em cada momento, expresso, em primeira linha, na Constituição e Leis da República, aqui se incluindo, tipicamente, os princípios da igualdade de género e da laicidade do Estado" e que o CSM "espera que isso aconteça sempre." O que deve suceder quando não acontece não diz. E acrescenta: "Nem todas as proclamações arcaicas, inadequadas ou infelizes constantes de sentenças assumem relevância disciplinar." Uma no cravo e outra na ferradura, comentou ao DN um juiz, que mesmo assim crê que o assunto será apreciado o próximo plenário do CSM, a realizar-se em novembro. Outro sentencia: "Com este discurso não se prevê que aconteça nada."