Verba do PRR esgotou em janeiro. Mais de metade das candidaturas sem financiamento. E agora?
“Há muito mais candidaturas dos municípios ao PRR-Habitação do que verba para atribuir, basta olhar para os números publicados no site do Programa de Recuperação e Resiliência.”
A afirmação é de Carla Tavares, presidente da Câmara da Amadora e da Área Metropolitana de Lisboa (AML). A socialista refere-se ao facto de, dos 3229 milhões negociados pelo anterior governo, no âmbito do Programa de Recuperação e Resiliência, para habitação, 2650 milhões, correspondendo a 82% da verba total, terem sido já, de acordo com o site oficial do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) – “Recuperar Portugal” – “aprovados”. O que significa que o valor remanescente para atribuir na área da habitação, ainda de acordo com o site do PRR, é de 584 milhões, dificilmente chegando para as candidaturas que ainda não foram analisadas/aprovadas.
Isso mesmo terá sido assumido a 21 de junho por um representante do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) com os 18 municípios da AML. De acordo com o relatado ao DN por alguém que esteve na reunião, as autarquias foram informadas de que a disponibilidade de financiamento das respetivas candidaturas (ainda não aprovadas) ao PRR cessara em meados de janeiro. Por outras palavras, o dinheiro acabara. Perante a aflição de quem representava ali os municípios, foi dito que da parte do Governo “não há ainda uma solução fechada para apresentar como alternativa de financiamento”.
A parte de leão do investimento e das candidaturas em causa respeita ao programa “1º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação”, dirigido a quem vive em condições indignas, e que prevê a reabilitação/construção de 26 mil fogos; o restante, de acordo com o que foi anunciado em dezembro de 2023 pelo anterior primeiro-ministro, António Costa, é dirigido para arrendamento acessível (seis mil fogos). Assim, a verba para os referidos 26 mil fogos do 1º Direito terá esgotado logo - no sentido em que foram aprovadas candidaturas nesse valor - em janeiro deste ano.
Significando assim que as propostas apresentadas entretanto - a data final de submissão foi 31 de março - e que, pelas exigências pelo PRR, correspondem a projetos já finalizados e contratados, prontos para avançar, estão sem financiamento assegurado.
A quanto orça o que está por aprovar não foi possível saber - durante mais de uma semana, o DN tentou, junto do IHRU e do ministério das Infraestruturas e Habitação, confirmar a informação, perguntando qual o valor das candidaturas até agora apresentadas ao IHRU e a quantos fogos respeitam, e os mesmos parâmetros para as que foram analisadas e aprovadas, sem obter qualquer resposta. Mas já em maio o ministro da tutela, Miguel Pinto Luz, admitira que menos de metade das candidaturas ao PRR que deram entrada no IHRU - a quem cabe analisá-las e dar o OK - tinham sido aprovadas: “Das mais de 7.000 candidaturas apresentadas ao PRR na área da habitação, ainda estão por despachar […] mais de 6.000”. O que leva a concluir que, como relata quem assistiu à referida reunião, o dinheiro se esgotou com uma fração do total de candidaturas.
Governo diz que só faltam “umas centenas de milhões”
A mesma fonte calcula que as candidaturas apresentadas e não aprovadas correspondem a um total de 27 mil fogos, e adverte: “O país precisa dessas casas, as pessoas precisam dessas casas; a pressão das pessoas junto das autarquias para obterem resposta a esta necessidade está a ser avassaladora”.
Este número, 27 mil, bate certo com o citado na apresentação, a 10 de maio, do programa Construir Portugal, na qual o governo de Luís Montenegro anunciou “um reforço de financiamento para viabilizar o desenvolvimento de milhares de outros fogos candidatos, mas não financiados no PRR”. Tal reforço, foi explicado, elevaria o número de fogos, reabilitados ou construídos, para 53.927 [ou seja, os 26 mil aprovados mais 27 927], sendo o prazo estendido para mais seis ou sete anos. E seria confirmado esta sexta-feira pelo ministro-adjunto e da Coesão, Manuel Castro Almeida, que em entrevista ao Expresso declarou: “Estão contratadas quase 26 mil casas, faltando apenas assinar na região de Lisboa e Vale do Tejo. Fá-lo-emos nos próximos dias. (…) No total, são 53 mil os pedidos de casas das câmaras.” Questionado sobre quanto será necessário para avançar com essas obras, foi vago: “Não é possível ainda identificar exatamente o montante, mas são algumas centenas de milhões de euros.”
Dificilmente será o caso: se o orçamento para construir ou reabilitar 26 mil fogos consumiu quase 3000 milhões, como seria possível que fazer o mesmo a outros 27 mil custasse apenas “algumas centenas de milhões”?
Falando com o DN previamente à entrevista do ministro da Coesão, e frisando que não esteve na supracitada reunião com o IHRU, a presidente da AML e da Câmara Municipal da Amadora, Carla Tavares, afirmou “não ter até agora nenhuma informação fidedigna, oficial, de que já acabaram as verbas”. Mas lembrou que as Estratégias Locais de Habitação (ELH), que, no âmbito do Programa 1º Direito, lançado em 2018, fizeram o levantamento das necessidades dos municípios (recenseando quem precisa de habitação e concluindo que faltavam 87 mil fogos), foram validadas pelo IHRU e concertadas com o Governo. Outro governo, é certo - havendo quem garanta que o executivo de António Costa foi dizendo às autarquias para apresentarem as candidaturas ao IHRU sem se preocuparem com o esgotar do financiamento, porque o que fosse necessário a mais viria do Orçamento de Estado.
“Não sei o valor das candidaturas que ficaram por aprovar”, reconhece a autarca, “mas, esgotada que esteja a verba do PRR, é necessário que o governo encontre mecanismos de financiamento nos mesmo moldes - ou seja, a 100% -, para garantir a execução de candidaturas que estejam previstas nas Estratégias Locais de Habitação e que tenham sido submetidas ao PRR. Depois de recensearmos as pessoas - foi a primeira vez que os municípios tiveram de fazer isso nesta escala, e foi muito importante porque permitiu uma radiografia clara das necessidades -, fazermos os projetos, não se pode deitar esse trabalho todo fora e deixar as populações na mesma situação.”
É esse o espírito do comunicado de 1 de julho das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, o qual sublinha “a necessidade de garantir financiamento adicional, e em condições similares, para as candidaturas submetidas, e não financiadas pelo PRR, e o alargamento das respostas para a habitação acessível, em particular no âmbito do arrendamento apoiado, com disponibilidade de recursos adequados.” Nesse sentido, anunciam os autarcas, vão “solicitar uma reunião ao primeiro-ministro para apresentar medidas concretas para ambas as regiões (…).”
Atrasos, burocracias, escalada de preços - e um prazo que acaba em junho de 2026
Entre os fogos cujo financiamento está por assegurar estão por exemplo, como refere ao jornal Carla Tavares, 881 respeitantes à Amadora, o município mais populado do país, e a três candidaturas: “Reabilitação de 760 fogos no Casal do Silva, e 73 na Brandoa, e a construção de 48 em Cerrado da Mira”. Um número de fogos superior ao das candidaturas aprovadas, correspondentes a 588 fogos, todos para reabilitação - 284 no Casal do Silva e mais 304 no Bairro da Boba. 60% das candidaturas do município estão assim por aprovar - incluindo as únicas que acrescentam fogos ao parque público (as do Cerrado da Mira).
Mas os problemas do PRR-Habitação não se esgotam na insuficiência da verba face ao número de candidaturas e às necessidades. Há desde logo o do atraso, que pode implicar a devolução das verbas, uma vez que os termos do programa implicam que as casas financiadas terão de estar prontas, e habitadas pelas pessoas a quem se destinam, em junho de 2026.
A dois anos do final do prazo, e despedindo a possibilidade de “a Europa aceitar prorrogações”, o Governo decidiu, face à lentidão na análise e aprovação das candidaturas, que, nos casos de habitação e centros de saúde, passaria a dispensar “a fase de análise em relação a alguns pressupostos das obras das candidaturas apresentadas pelos municípios”. Em causa está por exemplo, explicou declarações à Lusa o ministro Castro Almeida, avaliar “se as áreas estão corretas ou não ou se as varandas são ou não mais largas”. Assim, passa a aceitar-se uma espécie de “declaração de honra” dos autarcas em como a candidatura cumpre as leis e o regulamento do aviso do concurso [do PRR]: “Confiamos na palavra e vamos atribuir os contratos; depois de a obra começar, haverá tempo de dizer se a candidatura está ou não em condições”.
Outro anúncio do Governo, efetuado pelo mesmo ministro já em julho, na citada entrevista ao Expresso, é de que quer garantir, até final do ano, que nenhuma candidatura demora mais de 60 dias a ser analisada e que nenhum pedido de pagamento leva mais de 30 dias a ser realizado.
Sucede que também os municípios se atrasaram na preparação e submissão das candidaturas - o que se deve, como refere um especialista ouvido pelo DN, e que pediu para não ser identificado, quer a problemas burocráticos - “Desde o início que percebi que é muito difícil fazer isto com o código de contratação pública que temos” - quer à falta de interesse das empresas de construção civil. “O processo é muito complicado e exigente em termos técnicos, em procedimentos concursais”, adianta. Além disso, prossegue, “vai ser impossível construir com o preço de metro quadrado do aviso [que definiu os termos do concurso], porque estamos numa escalada constante por causa das guerras”. Ao aumento dos preços dos materiais soma-se a falta de mão de obra - já assinalada pelas empresas de construção civil como um óbice ao cumprimento dos prazos do PRR.
Isso mesmo foi reconhecido pelo Governo de António Costa, que no final de março, de saída, aprovou um reforço de 390,5 milhões de euros no financiamento dos 26 mil fogos do 1º Direito previstos no PRR-Habitação. Em causa, precisamente, “o contexto inflacionista e consequentes aumentos abruptos dos preços das matérias-primas, dos materiais e da mão-de-obra”, que tiveram “um impacto direto nos custos das operações inscritas no PRR”.
Já o atual executivo concluiu, face à necessidade de “acelerar” o cumprimento do PRR, que o Código de Contratos Públicos tem de ser alterado. Di-lo Castro Almeida ao Expresso: “É essencial rever todo o sistema da contratação pública, porque a legislação portuguesa é mais exigente do que as obrigações europeias.”
PRR vai pagar sobretudo reabilitação e pouco acrescenta ao parque público?
Por fim, as questões de concepção, planeamento e adequação. E que são focadas no site O Contador, criado pelos arquitetos Helena Roseta, Sílvia Jorge e Aitor Varea Oro, no qual é feito um seguimento, com cruzamento de dados entre o site Recuperar Portugal, o portal Mais Transparência (que regista as características das candidaturas aprovadas em 12 dos programas abrangidos pelo PRR) e o Portal Base (onde são inscritos os contratos públicos), daquilo que chamam “a corrida ao Primeiro Direito” e do alocar das verbas do PRR previstas para esse esse programa.
De acordo com um texto da autoria de Aitor Varea Oro, investigador do grupo Morfologias e Dinâmicas do Território do Centro de Estudos em Arquitectura e Urbanismo da Universidade do Porto, publicado a 1 de março no Construção Magazine, e reproduzido no Contador, a georreferenciação do total de candidaturas ao PRR-Habitação contratualizadas por município “evidencia uma concentração do financiamento no litoral, nas áreas metropolitanas e em outros núcleos urbanos, como algumas capitais de distrito”.
Contrariando “o argumento de que é aqui que se concentra o dinheiro porque é aqui que se concentra o grosso da população”, o arquiteto frisa que o que lhe importa estudar não é “o financiamento total alavancado, mas sim a capacidade de acesso ao mesmo”, sendo “vários os municípios que, apesar de identificarem carências habitacionais, não conseguiram ter uma candidatura aprovada aos programas dirigidos à sua superação”. Isto enquanto “os municípios mais ricos revelam maior capacidade de acesso a programas mais robustos e diversificados”, ficando “patente que a capacidade técnica e a riqueza municipal constituem importantes fatores de desenvolvimento local e, consequentemente, de diminuição de desigualdades, atendendo aos desiguais recursos das autarquias”.
Por outro lado, sublinha-se ainda no texto citado, das candidaturas públicas contratualizadas no âmbito do 1º Direito até fevereiro de 2024 (9.926), mais de metade (6.542) dizem respeito a reabilitação, muita dela incidindo no parque habitacional público, e com valores por fogo de 41.544 euros, muito abaixo “dos 71.328€ verificados na globalidade das operações (incluindo construção nova)”. O que dá a ver “uma forte aposta na reabilitação do parque habitacional público, grande parte erigido ao abrigo do Programa Especial de Realojamento, mas não só”, o que “não irá contrariar significativamente o habitat segregado que carateriza estes conjuntos”.
Num artigo de opinião no Público a 28 de maio, Varea Oro certifica que a percentagem de fogos com financiamento do PRR que correspondem a reabilitação do parque público existente – “operações mais baratas e de mais fácil resolução, mas que nem aumentam significativamente número de fogos nem contribuem para promover um maior impacto físico e social” – é afinal de 70%.
O que significa, argumenta Oro no Construção Magazine, que não se optou pelo aumento do parque público, tendendo a execução do financiamento” a ficar à margem de desafios atuais e que regem a execução do PRR: a coesão social e territorial e a transição climática”. Se, admite, a fase final de atribuição de financiamento pode ainda vir a alterar os dados apresentados, “a verdade é que poucas serão as situações de indignidade habitacional de caráter estruturante que poderão vir a ser resolvidas num futuro próximo”.