Um regresso maior que a nostalgia: projeto cultural e ecológico quer pôr o Transpraia de volta nos trilhos
Quando o francês Gregory Bernard, 52 anos, andou no Transpraia — famoso comboio que percorreu a Costa da Caparica entre 1960 e 2020 — pela primeira vez, a paixão foi à primeira vista. "Quando cheguei a Portugal [em 2017] e apanhei o Transpraia, com minha família, achei algo único. Nunca vi nada no mundo como atravessar as dunas naquele comboio lindo e pequenino", recorda o francês.
Poucos anos depois de se encantar com o comboio, Bernard viu com tristeza, assim como muitos da Caparica, o encerramento do Transpraia durante a pandemia. Empreendedor ferrenho desde o século passado, o também produtor de cinema e entusiasta da cultura e de projetos ecológicos resolveu liderar então um projeto ambicioso: recuperar e reativar o comboio dos seus olhos.
"Quando cheguei a Portugal, prometi a mim mesmo que não faria mais nada novo", relembra. "Tinha passado por um processo de burnout, queria ter uma vida mais tranquila... mas o meu DNA pesou mais", acrescenta o parisiense, que antes do investimento no Transpraia abriu o seu próprio restaurante na Costa da Caparica, o Dr. Bernard.
A ideia "maluca", como define, de investir no antigo — e, hoje, quase decadente — comboio, foi por entender os benefícios que o Transpraia traz à comunidade da Caparica e seus visitantes. Especialmente nos dias mais cheios, na temporada alta do verão.
"Depois do encerramento, percebi que quem vive na Caparica é muito apaixonado por este comboio, sente muito a falta dele. Achei, então, que precisávamos de nos unir para garantir que ele renascesse." A iniciativa, vale a pena sublinhar, não é apenas por valor simbólico. "Também é algo que a área precisa por causa do trânsito, do parqueamento e do stress relacionado com o facto de vir para a Caparica. Não deveria ser algo stressante", sublinha.
Bernard estima que, com o retorno do Transpraia, possibilidade que começou a conversar com a Câmara Municipal de Almada em 2022, "cerca de 1500 vagas de parque" seriam economizadas. "Mesmo que o comboio transporte 4000 ou 5000 pessoas por dia, já estamos a falar, no mínimo, de 1000 carros.
Ou seja, em questões de mobilidade, o regresso dos comboios elimina dois problemas: o trânsito e o parqueamento ilegal, que também atrapalha, bloqueia as duas vias e afasta pessoas que queiram vir para a Costa", alerta. "Além de, evidentemente, ser muito mais saudável para o meio ambiente", conclui.
Investimento milionário
Apesar do interesse ter surgido há muito tempo, foi só em 2024 que Bernard conseguiu, de facto, investir no projeto do regresso do comboio. Em agosto do ano passado, o francês juntou-se a outros investidores com quem levantou e aplicou cerca de um milhão de euros para a recuperação do comboio.
"Este dinheiro foi usado basicamente para o trabalho jurídico e os estudos técnicos acerca do Transpraia, mas é agora que o grande trabalho começa. Estamos a tentar arrecadar mais um milhão de euros para realmente o colocar de volta em operação. Estamos a pressionar para que seja classificado como monumento histórico, para que seja realmente protegido, ao longo dos anos, e se torne uma espécie de património da Costa da Caparica", explica Bernard, que, apresentando-se como um empreendedor muito focado no meio ambiente, tem os projetos ecológicos como uma das bases para o futuro do comboio.
A ideia é ambiciosa: fazer com que o futuro Transpraia funcione à base de energia elétrica. "A sustentabilidade e proteção do ecossistema é uma parte muito importante do nosso projeto. Fizemos um estudo com a Nova FCT para ver qual seria o custo de eletrificar o comboio, trocar o diesel por eletricidade. Como disse, já é muito sustentável colocá-lo de volta nos trilhos como está, mas temos o desejo de mudar para o elétrico. Há um projeto de colocar painéis solares no parque da praia, talvez possamos fazer uma parceria, com a EDP para equipar os estacionamentos com painéis solares... são possibilidades", revela.
Prevendo, antes, que a volta do comboio pudesse ser já neste verão, Bernard e os investidores são agora mais modestos e já admitem um possível regresso "em um a dois anos". Para já, inclusive, as conversas estão a ser mais complicadas devido às Eleições Autárquicas — a realizar no segundo semestre deste ano.
"É um trabalho que deve ser feito em conjunto com o público e o privado: entre nós, outros possíveis investidores, e a Câmara, o Governo, o Turismo de Portugal", sublinha. "Espero que eles apoiem realmente o renascimento do comboio, porque podemos ir muito rápido, não é preciso muito dinheiro, só é preciso empenho e foco", defende. "Isto estava a funcionar em 2019, então precisamos de consertar os carris, limpar a areia, mas de forma geral é um trabalho bastante simples", complementa.
Centro Cultural
Enquanto não tem o sinal verde para avançar com o efetivo regresso do Transpraia aos trilhos, Grégory Bernard aproveita o espaço do hangar do antigo comboio para promover a cultura. Nesta quinta-feira (29), o francês e a associação Amigos do Transpraia, formada, entre outros, por artistas da comunidade local, inauguram a segunda exposição desde que o espaço foi adquirido por Bernard.
"A primeira exposição que tivemos foi individual, do artista Kampus, e teve um grande sucesso", recorda. "Desta vez, chamámos-lhe Amigos do Transpraia, para homenagear a associação, com a ideia de reunir toda a energia positiva das pessoas criativas que querem que o Transpraia volte à vida. Teremos 20 artistas diferentes doando peças e 40%, 50% da receita será destinada ao apoio às iniciativas em torno da associação. E é o que eu chamo de comunidade", acrescenta.
A iniciativa é apenas uma da série de projetos de desenvolvimento que o popularmente conhecido apenas por "Greg" almeja para o espaço, o qual pretende transformar num "Centro Cultural" da Caparica nos próximos tempos.
"O meu sonho é que o hangar não se torne apenas um armazém, mas sim um espaço cultural, onde as pessoas possam conviver, ver arte, filmes, debates, beber, comer, e ver os comboios, claro. Sabemos que a Caparica é muito mais utilizada em três ou quatro meses do ano, portanto seria fantástico fazer deste edifício um local onde as pessoas queiram vir em qualquer altura, seja para o transporte para a praia, seja para as nossas exposições e eventos", diz com entusiasmo o também cineasta, que já está a produzir um filme acerca do Transpraia.
De acordo com o francês, a iniciativa poderia dar uma outra faceta ao futuro cultural da Costa da Caparica. "Talvez, no futuro, a arte possa estar não só em Lisboa, mas também na Margem Sul. E o Transpraia pode fazer parte deste processo", finaliza Bernard.
A exposição Amigos do Transpraia é inaugurada às 14h00 desta quinta-feira (29) e fica em cartaz até o dia 9 de junho. A exibição tem entrada gratuita. O hangar do comboio fica localizado na Praia da Riviera, na Costa da Caparica.
nuno.tibirica@dn.pt