Um milhão de infetados: O que parecia impossível para os portugueses, afinal, concretizou-se
Em fevereiro do ano passado, o SARS CoV-2 começava a atacar a Europa. Itália foi dos primeiros países a ser fustigado. Dia a dia, os casos aumentavam desmesuradamente e as imagens dos internados em unidades de cuidados intensivos circulavam e assustavam o mundo. O vírus sobre o qual pouco ou nada se sabia começava a ter um impacto brutal.
Em Portugal, e mesmo antes de os primeiros casos de infeção terem sido diagnosticados, os serviços de saúde começaram a preparar-se para o que aí vinha. E, no dia 29 de fevereiro de 2020, a diretor-geral da Saúde dá a primeira entrevista onde fala sobre o assunto, admitindo que um milhão de portugueses poderia ser infetado por este novo coronavírus.
Foi a primeira projeção para o país sobre o impacto da infeção que dias depois, a 11 de março, veio a ser classificada pela Organização Mundial de Saúde como pandemia. Na altura, Graça Freitas esclareceu que esta projeção tinha sido construída pelos serviços de saúde, tendo por base a fórmula utilizada para a pandemia da Gripe A, em 2009. "Estamos a fazer cenários para uma taxa total de ataque de 10% [um milhão de portugueses], assumindo que vai haver uma propagação epidémica mais intensa durante, pelo menos, 12 a 14 semanas", disse a diretora-geral na entrevista ao semanário Expresso.
Uma afirmação que escandalizou alguns, até da comunidade científica, e que outros criticaram por a considerarem exagerada, recordando mesmo que, em 2009, a Gripe A, não foi o que se pensava que seria. Aos olhos da população em geral, o número parecia absurdo para um país tão pequeno.
Mas, afinal, a primeira projeção estava correta. Foi atingida 532 dias depois, tendo em conta que os primeiros casos foram diagnosticados em Portugal a 2 de março e que a barreira do milhão foi ultrapassada a 14 de agosto de 2021.
Voltando à entrevista da diretora-geral, as projeções feitas apontavam também que 80% do total de infetados pelo novo coronavírus iriam "ter doença ligeira a moderada", 20% "doença mais grave" e 5% "evolução crítica" ou mesmo fatal. O que, de certa forma, se veio a confirmar nestes 532 dias de pandemia.
Mais. O cenário construído pelos técnicos das autoridades de saúde indicava que a taxa de letalidade - o número de mortes versus número de casos de infeção - deveria situar-se entre os 2,3% e os 2,4%. Uma taxa que não está fora da realidade, apenas no que toca à realidade vivida durante a terceira vaga, entre dezembro e fevereiro, em que só no mês de janeiro o país registou mais de 305 mil casos e mais de 5500 mortes.
A verdade é que no pior momento da pandemia, a realidade ultrapassou não só a primeira projeção no que toca ao que se poderia atingir nas semanas mais críticas, como superou todas as outras que tinham sido feitas pouco antes da terceira vaga acontecer.
Os especialistas chegaram a comentar que a realidade estava a ultrapassar os modelos matemáticos, sublinhando a urgência de medidas. Dias depois, as escolas voltavam a fechar e o país regressava ao segundo confinamento geral pelo período mais longo, dois meses e meio.
A semana mais dramática foi a de 25 a 31 de janeiro, quando chegados ao dia 28 se registam 16 432 casos, o que fez ultrapassar, e muito, o que Graça Freitas tinha dito, em fevereiro de 2020, sobre a semana mais crítica. "No cenário mais plausível, poderá haver cerca de 21 000 casos na semana mais crítica", dos quais 19 000 poderão ter sintomas ligeiros, como a gripe, e 1700 terão de ser internados, nem todos em cuidados intensivos".
Mas não. A semana mais crítica da pandemia atingiu mais de 50 mil casos. A pandemia continuava a surpreender em Portugal. Na mesma entrevista, a diretora-geral realçava também que os serviços de saúde tinham planos de contingência para responder à propagação do novo coronavírus em Portugal, estando previstas a disponibilização de 2000 camas de enfermarias hospitalares e 300 quartos com pressão negativa, em cuidados intensivos. Mais uma vez, a realidade ultrapassou esta e outras projeções, fazendo com que este número tivesse que ser aumentado em muito e com os hospitais a terem de parar a atividade programada, ficando só com as situações urgentes e emergentes, para dar resposta à pandemia.
Em todas as unidades do país, houve enfermarias que foram adaptadas para receber os doentes com covid-19, que não paravam de chegar, e outras que tiveram de se transformar em unidades de cuidados intermédios ou de cuidados intensivos. Aliás, nos cuidados de última linha, as camas disponibilizadas chegaram até às 1200.
Mas a barreira dos 10% de população infetada, de um milhão de casos, chega agora, ao fim de 532 dias depois dos primeiros diagnósticos. Para os especialistas, 532 dias que representam um percurso de avanços e recuos no combate à pandemia. E, se os primeiros 100 mil casos levaram 231 dias a chegar, o que aconteceu a 19 de outubro de 2020, os 200 mil chegaram em apenas 25. A partir daqui, a infeção ganhou outra dimensão e nunca mais levou tanto tempo a ultrapassar as barreiras da centena de milhares.
Para os 200 mil infetados bastaram 18 dias. Depois, o tempo voltou a dilatar para os 25 dias até se atingir os 800 mil casos, o que aconteceu a 25 de fevereiro. Aqui, e com o país fechado em casa, a tendência inverteu-se. Foram precisos 135 dias para se alcançar a barreira dos 900 mil casos. Foi a 9 de julho, mas o desconfinamento encurtou de novo o tempo e para se passar a barreira do milhão, tiveram de passar apenas 37 dias.
Neste tempo, segundo dois médicos que acompanham a pandemia desde o seu início, "nada nem ninguém ficou indiferente ao que se passou". Desde os serviços de saúde ao impacto social, já que esta obrigou a dois confinamentos gerais prolongados que atiraram milhares de trabalhadores para o Lay Off e para o desemprego e outros tantos empresários para o fim da sua atividade.
Filipe Froes, pneumologista e coordenador do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos par a covid-19, e Ricardo Mexia, epidemiologista e presidente da Associação Portuguesa de Médicos de Saúde Pública, confessam até, que, do ponto de vista pessoal e profissional, este período de pandemia talvez esteja a ser o mais exigente das suas carreiras.
Ricardo Mexia considera que "desde março do ano passado até agora houve uma enorme evolução" e que "ninguém ficou indiferente ao que se passou". Aliás, sobre as primeiras projeções de Graça Freitas recorda até que ele próprio achou ser "uma projeção exagerada, até porque estava baseada nos modelos da Gripe A e não era plausível ou imaginarmos que pudesse atingir esta dimensão".
O facto é que aquilo que parecia ser impossível de atingir, concretizou-se. E o presidente da APMSP reconhece que "o tempo veio dar razão às projeções da diretora-geral da Saúde". Agora, quase um ano e meio depois e já com vacinas, o médico acredita "ser muito pouco provável que se atinja os dois milhões de infetados. Temos as vacinas, há menos infetados e menos letalidade. Penso que estamos a caminho de resolver a situação", embora, admita, "ainda nos falta algum percurso para o conseguir".
Hoje, o mundo e Portugal já sabem mais do que se sabia em fevereiro do ano passado, pouco antes dos primeiros infetados aparecerem, mas a pandemia continua a surpreender. Agora, e mesmo com uma parte da população já vacinada, o medo é o da emergência de novas variantes resistentes às vacinas, o medo é o de que o comportamento humano não seja o de cumprir as regras de proteção individual, como o uso de máscara, ou de os países mais pobres não tenham acesso rápido às vacinas. Se tal não acontecer, a própria OMS já disse que "é morrermos na praia".
Ao fim deste tempo, Ricardo Mexia assume que gostaria poder dizer que não repetimos os mesmo erros, mas não é assim, porque "sempre que houve um aumento da incidência, não houve de imediato um reforço de meios, sobretudo na área da Saúde Pública. E a própria estratégia de comunicação desde o início que tem sido difícil de compreender quais são os seus objetivos". Como médico de saúde pública e epidemiologista, Ricardo Mexia afirma que ao fim deste tempo "continuamos no fio da navalha, mesmo com uma incidência mais baixa, as unidades continuam a trabalhar sem parar, continua a ser muito desgastante".
Para o pneumologista Filipe Froes, "há dois momentos marcantes neste ano e meio de pandemia a nível global, quer na perspetiva do vírus quer na do hospedeiro, o humano. Na do vírus, eu diria que o momento marcante é aquele em que nos apercebemos que há a emergência de novas variantes, e na do hospedeiro, o do aparecimento das vacinas".
O médico, também coordenador do Gabinete de Crise da Ordem, explica que "com o primeiro momento percebemos que qualquer vírus poderá ser uma ameaça contínua para o homem. Foi o que fez este vírus ao demonstrar que tem capacidade para evoluir e para se modificar. Com o segundo momento, percebemos a capacidade da ciência e da tecnologia, que caracterizam a sociedade atual, que em tempo recorde, e com eficácia e segurança extraordinárias, puseram no mercado uma vacina, que está a controlar a pandemia e a devolver a esperança de que o fim estará mais próximo".
Relativamente à pandemia em Portugal e ao milhão de infetados, Filipe Froes sublinha que "a grande ilação que tiro é a importância que tem um Serviço Nacional de Saúde como o nosso, que se revelou forte, diferenciado e de excelência na resposta à pandemia". No entanto, salvaguarda, "foi a mesma pandemia e a falta de reservas do SNS que condicionaram a resposta a outras patologias. O SNS teve o melhor e o pior da pandemia, porque quando esta terminar teremos de lidar com o pandemónio das consequências da covid-19 e com a tentativa desesperada de recuperar o atraso das outras patologias".
Mas há mais outra grande ilação que retira deste tempo em que o país completou um milhão de casos. "A pandemia veio reforçar a importância do conhecimento e da ciência como pilares essenciais para o planeamento e para a organização e desenvolvimento civilizacional. Em contraponto, já as fake news e a ignorância que provocam, bem como o negacionismo à vacinação são uma ameaça permanente ao desenvolvimento e ao bem-estar de todos".
Para terminar, Filipe Froes faz também um balanço pessoal, admitindo que esta pandemia se tornou num dos momentos, senão mesmo o momento, de maior atividade e de exigência que senti ao longo da minha vida pessoal e profissional, mas a resposta dada pelos meus pares e pelos restantes profissionais de saúde deixam-me com o sentido de consciência tranquila e de missão cumprida".