Tribunais estão a 'libertar' cidadãos de cumprir isolamento. Médicos sentem-se desautorizados

O país passou do estado de emergência para o de calamidade. E os pedidos de habeas corpus para o não cumprimento de isolamento profilático aumentam. Os médicos de saúde pública sentem-se desautorizados e pedem ao governo que clarifique a lei. O presidente da Associação Sindical dos Juízes concorda e diz que tal já deveria ter sido feito há mais tempo.

Uns regressavam de países com incidência elevada de covid-19, outros viajaram num voo em que, após o desembarque, foi detetado um caso positivo e outros ainda partilharam o mesmo espaço no trabalho, o mesmo carro ou até a mesma mesa no café, mas a todos os médicos de saúde pública tiveram de decretar isolamento profilático de 10 a 14 dias, mesmo com testes negativos e sem sintomatologia, para dar cumprimento às normas definidas pela Direção-Geral da Saúde (DGS) e pelos órgãos de soberania, que aprovaram os estados de emergência e de calamidade como medidas no âmbito do controlo da pandemia.

Só que há cidadãos que não aceitam esta decisão por considerarem que a sua liberdade individual está a ser coartada ou aplicada de forma desproporcionada, sem legalidade. Recorreram aos tribunais com um pedido de habeas corpus e têm conseguido que as decisões da autoridade de saúde seja revertida, ficando assim libertos do cumprimento da medida.

A questão agora é que o recurso aos tribunais está a aumentar desde que entrou em vigor o estado de calamidade e a situação está a gerar cada vez mais mal-estar na classe.

Segundo explicaram ao DN vários médicos de saúde pública, há situações que ocorreram no ano passado, mesmo durante o estado de emergência, mas há outras que aconteceram no início do ano e mais recentemente com o estado de calamidade. "Alguns juízes consideram que a suspensão de direitos fundamentais, como a liberdade, não pode ser ordenada por um decreto do governo, como é o caso do estado de calamidade, mas apenas por uma lei da Assembleia da República, como está configurado no quadro constitucional", referem as mesmas fontes, reforçando, no entanto, que uma decisão deste tipo também "configura uma desautorização das autoridades de saúde, violando o direito de proteção à saúde, também determinado na Constituição".

Os mesmos médicos admitem que as pessoas a quem é decretado o isolamento nestas condições, "à partida, não estão doentes. Ou melhor, não têm sintomatologia no momento, mas representam sempre um perigo, porque podem estar em período de incubação e a colocar outros em risco".

E se antes os médicos de saúde pública viam os pedidos de habeas corpus - uma medida judicial que tem como objetivo a proteção da liberdade de locomoção do indivíduo - a chegar aos tribunais sobretudo em situações de viajantes, agora são também confrontados com casos de isolamentos decretados em contexto laboral e social, sublinhando que neste momento já há casos de norte a sul do país, embora sejam mais frequentes nas grandes áreas metropolitanas.

"Há um ou outro tribunal, em particular, que até já é recorrente nesta decisão, dando-nos a impressão de que há coletivos de juízes desagradados com a forma como a medida está enquadrada juridicamente e que querem fazer prevalecer a sua interpretação e a sua posição", referem alguns dos médicos com quem o DN falou e que pediram o anonimato. "Para nós era importante que a justiça olhasse para a realidade e percebesse o porquê desta decisão. Por outro lado, consideramos que o governo já deveria ter feito alguma coisa para clarificar a legislação."

Tribunais devem atender ao contexto em que vivemos

Os médicos de saúde pública dizem que se sentem cada vez mais desautorizados, questionando mesmo: "Assim, qual é o nosso papel? Estamos a ser desautorizados como autoridades de saúde e do próprio Estado e é importante perceber como podemos e devemos atuar, porque as normas da DGS e as resoluções do Conselho de Ministros continuam a chegar-nos com os mesmos procedimentos, mas depois não é essa a interpretação dos tribunais."

O presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Saúde Pública (APMSP), Ricardo Mexia, confirmou ao DN ter conhecimento de que estas situações estão a acontecer no país e até que já alertaram as autoridades centrais para "as diferentes interpretações que estão a ser feitas da legislação".

O que está em causa, sublinha Ricardo Mexia, "não é o papel dos tribunais, porque a restrição de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos é muito importante e deve ser mediada por essas instituições, mas estas também devem atender às circunstâncias que estamos a viver e os riscos que tais situações geram para terceiros. A proteção da saúde de cada cidadão também é um direito protegido constitucionalmente que tem de ser tido em conta nesta análise".

Mas o que está a acontecer, continua, "é a justiça a colocar em causa o que é a tarefa de um médico de saúde pública no âmbito da proteção da saúde dos cidadãos, porque é disso que estamos a falar".

O presidente da APMSP argumenta mesmo que, ao longo deste ano e meio de pandemia, "os médicos de saúde pública têm tido uma enorme preocupação em proteger as populações, e quando emitem normas e determinações de isolamento profilático é nesse sentido. O que se pretende é proteger os próprios e as pessoas que potencialmente possam contactar com eles. Portanto, o isolamento profilático é uma medida que nos parece absolutamente fundamental para controlar a pandemia".

Quem está no terreno corrobora esta posição, defendendo que, "se há uma decisão da justiça que reverte a da autoridade de saúde pública, não é bom para a proteção da saúde nem para o país". Por isso consideram que algo tem de ser feito, porque "o regime jurídico que sustenta as nossas decisões não pode ser dúbio. As medidas de saúde publica têm de ser implementadas sem uns juízes a considerar que se está a restringir as liberdades e garantias de um cidadão, em nome da proteção da saúde pública, e outros a entenderem que estamos a agir legalmente. É preciso perceber esta situação e resolvê-la", defenderam as mesmas fontes.

O DN contactou o Ministério da Justiça para saber se há alguma estatística referente a este tipo de situação e em que tribunais estão a aumentar nos últimos tempos, mas não obteve resposta.

Uma pesquisa pela internet identifica três notícias de situações de habeas corpus aceites pelos tribunais, duas delas ainda em estado de emergência. A primeira data de dezembro do ano passado, no Tribunal de Sintra, em que uma juíza aceitou o pedido de habeas corpus de uma cidadã que regressava de um país com elevada incidência, mas sem sintomas e com teste negativo, por considerar que o isolamento profilático a sujeitava a uma prisão domiciliária ilegal. A juíza de instrução criminal não ignorava o estado de emergência, mas reverteu a decisão libertando-a da medida.

A segunda ocorreu nos Açores. O tribunal deu razão a um casal que requereu habeas corpus por considerar que o isolamento profilático de 14 dias imposto era "manifestamente desproporcional". A terceira, mais recente, volta a acontecer no Tribunal de Sintra, que aceitou o pedido de habeas corpus de uma advogada que regressava do Brasil com o marido e uma filha menor e que recebeu ordens das autoridades de saúde para ficar em isolamento durante 14 dias. O tribunal considerou que uma medida destas não pode ser aceite por determinação de um despacho do Conselho de Ministros, mas sim por meio de uma lei do Parlamento, e retirou-lhe a medida.

Juiz adverte médico de que na próxima é constituído arguido

Em todas as situações os médicos de saúde pública tiveram de ir a tribunal explicar o porquê da decisão e o seu fundamento. "Temos um colega que teve de se apresentar em tribunal de um dia para o outro, sem sequer conseguir levar apoio jurídico, para explicar a decisão de 14 dias de isolamento profilático a um cidadão que chegava de um país com elevada incidência de covid-19. O juiz perguntou-lhe porque tinha "privado aquela pessoa da sua liberdade, quando o que o colega fez foi cumprir a resolução do Conselho de Ministros e as orientações da DGS, porque em momento algum fez outra coisa que não os procedimentos habituais assumidos por todas as autoridades de saúde do país no contexto da pandemia".

Segundo contaram ao DN as mesmas fontes, "este colega viu a sua decisão revertida e ainda com uma agravante: teve de ouvir do juiz que se voltasse a determinar o isolamento numa situação daquelas estaria sujeito a ser novamente chamado a tribunal e a ser constituído arguido por abuso de autoridade. Esta fundamentação então é a humilhação total", acrescentando: "Como é possível? A nossa função é cumprir as resoluções do Conselho de Ministros, determinadas a partir da Lei de Bases da Proteção Civil e as normas da autoridade nacional de saúde."

A questão é que o regime de liberdades, direitos e garantias definido em decreto-lei de 10 de abril de 1976, com 296 artigos, e já com oito atualizações, a última de 2005, refere, no seu artigo 19.º, que: "Os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição."

E é neste quadro jurídico que os juízes se fundamentam. Há uma semana, o governo criou uma comissão, que integra vários juristas, precisamente para avaliarem o que é o preciso fazer em termos de enquadramento para que as determinações da saúde sejam efetivas e sem reversões da justiça, mas, como defende o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, "a clarificação da legislação já deveria ter tido intervenção do Parlamento".

Habeas corpus para contextos laborais e sociais

De acordo com as normas da DGS, a determinação de isolamento profilático pode ter por base a vinda de um país com incidência elevada, por contacto com um caso positivo e até há bem pouco tempo por contacto com um contacto que tivesse estado exposto a caso positivo. "Este último caso são os coabitantes de alunos em cujas turmas tenha havido um caso de infeção, mas esta situação já foi revertida, porque, no mínimo, tínhamos de colocar em isolamento, além das 20 ou mais crianças da turma, os pais e todos os familiares destas. Chegámos a isolar mais de 75 pessoas a partir de um caso numa turma", explicaram-nos.

Mas há outras situações que começam a chegar aos tribunais com pedidos de habeas corpus e que surgem de isolamentos decretados por contactos em contextos laborais ou sociais. "Pessoas que partilham o mesmo espaço, o mesmo carro e até a mesma mesa num café ou num restaurante. Nestas situações, a autoridade de saúde faz a avaliação de risco a que estiveram expostos a partir do que é contado pelas próprias pessoas, e depois decide se determina o isolamento profilático, e, em muitas situações, há pessoas que estão a recorrer ao tribunal para serem libertadas da medida e têm conseguido que as decisões venham a ser revertidas."

Outro exemplo. "Duas pessoas viajam no mesmo voo, ambas tinham testes negativos, mas, depois da chegada, uma sentiu-se febril, fez novo teste e deu positivo, as pessoas que viajaram na sua proximidade foram colocadas em isolamento, e já houve quem recorresse ao habeas corpus e tivesse conseguido."

O presidente da APMSP reforça que "o que se tem vindo a constatar é uma sucessão de reversões das decisões dos médicos de saúde pública pelos tribunais. Portanto, o que nos parece fundamental é que do ponto de vista normativo haja meios mais expeditos e mais ágeis para que estas situações possam ser determinadas naturalmente pelos médicos. Para nós, o papel dos tribunais é absolutamente claro, mas sem esta dualidade nas interpretações. Urge resolver o problema, sobretudo para se proteger a saúde dos cidadãos".

Associação de Juízes diz que situação jurídica para a pandemia é pouco clara

O presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Soares, diz estar de acordo com os médicos de saúde pública, que "reivindicam a necessidade de a lei ter mais clareza para que eles próprios também possam saber como atuar, porque se a lei não for muito clara, corremos o risco de o tribunal A decidir de uma maneira e de o tribunal B de outra. É claro que isso tem solução no sistema, daqui a uns meses, um ano ou dois haverá uma intervenção de um tribunal superior que uniformizará a interpretação da lei, mas não será uma solução útil neste tempo".

E diz mesmo que "uma coisa é viver um mês de pandemia, outra é estarmos já com ano e meio e com uma situação jurídica pouco clara, em que nem as autoridades de saúde nem as policiais, a certo momento, sabem exatamente como atuar ou, então, estarem convencidos de que estão a cumprir bem a lei mas depois as pessoas reagem, recorrem aos tribunais e estes revertem as decisões".

Para o presidente da ASJP, "isto é negativo, não apenas para a situação pessoal de cada indivíduo, que é sujeito a uma medida que não é legal, porque se o tribunal declarar que não é é porque não é. E também não é positivo para a autoridade do Estado, porque o Estado quando impõe regras é suposto que as pessoas as percebam e as entendam como obrigatórias". Acrescentando: "Isto já deveria ter sido objeto de intervenção no Parlamento. O governo criou agora uma comissão para estudar as possibilidades de atuação nas situações de calamidade, mas dentro do quadro constitucional, tornando mais claro quais as medidas restritivas de direitos que podem ser usadas, mas é pena que tal não se tivesse já feito. Pelo que percebi, esta comissão terá três a quatro meses para apresentar um projeto, mas não é de esperar que haja uma solução rápida."

Do lado da saúde, os médicos sentem-se desautorizados e dizem ser o direito à proteção da saúde pública que está em causa. Do lado da justiça, Manuel Soares sublinha que "em estado de emergência é mais ou menos claro o que é para fazer, mas o estado de emergência é uma medida especial que necessita da intervenção de todos os órgãos de soberania. Se não há estado de emergência, temos de ter outros mecanismos adequados para proteger a saúde pública, porque a situação tem gravidade suficiente para isso, mas dentro do que a Constituição o permitir".

O fim à vista para esta situação poderá levar demasiado tempo para uns e para outros.

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