"Tem nele a força que o vai manter vivo”, diz ao DN um amigo próximo. A têmpera já foi testada: Tiago resistiu a um cancro, quatro anos inesperados e assustadores, duros de roer. Venceu. Muito jovem, ganhou vida nova. Nos prazeres da mesa - “é uma trituradora, tem um apetite voraz”- ou nos passeios de mota, uma scooter sinónimo de liberdade. .No dia-a-dia, Tiago gosta de pessoas e de conduzir. “Faz, por isso, exatamente o que gosta”, diz um amigo. Apesar de um início difícil: aprender percursos, pressão para cumprir horários, com ou sem trânsito, stress, medo. Passageiros impacientes, cansados, vidas duras de quem regressa aos bairros periféricos ao fim de muitas horas de trabalho. Jovens marginalizados. “O Tiago lidava bem com todos. Sempre muito calmo, mesmo com os miúdos que querem apenas assustar, sentir-se poderosos, ou com os que tentam viajar sem pagar muitas vezes só por provocação”. Colegas dele da Rodoviária de Lisboa dizem que receberam de utentes “ manifestações de verdadeira solidariedade”. “Não tem nele um pingo de maldade. Por muito mal que o turno esteja a correr, nunca se zanga”. Para poder compor o salário mensal, Tiago escolheu trabalhar no horário da noite. A última carreira para a Cidade Nova costuma ser muito calma. “Os turnos da noite, ao contrário do que possa pensar-se, costumam ser mais calmos”, diz quem também faz o percurso. .Et pluribus unum.O Tiago jogou futebol. Dos 20 aos 30 anos, disputou campeonatos distritais da Associação de Futebol de Lisboa. Era um centrocampista de muita raça e mediano talento, com os olhos na primeira paixão de que se lembra: o Benfica. .O Tiago gosta de viajar, mas não sonha com paraísos tropicais. Gosta de guiar, e trata com esmerado carinho o carro recentemente comprado, mas não sonha com bólides. O sonho maior de Tiago é visitar os balneários da Luz, cumprimentar os jogadores, recolher as assinaturas dos ídolos. Família e amigos querem fazer-lhe uma surpresa: a camisola do Benfica assinada pelos jogadores, treinador e Rui Costa. .As vitórias dos encarnados exacerbam-lhe o sentido de humor. “Levei com ele muitas vezes”, diz um amigo sportinguista. Na cantina, ao almoço, ou no desafio diário que lança aos colegas de turno: ‘Anda lá pagar um café’. .“O Tiago faz-me muita falta”, diz o melhor amigo. “Ao mesmo tempo que me põe a rir, puxa-me os pés para a terra”. .Por onde passa, faz amigos. “É fácil simpatizar com ele. É bom colega”, conta quem trabalhou com ele na distribuição e reposição de tabaco. Um dos muitos que aderiram de imediato à campanha de recolha de fundos para ajudar Tiago e a sua família, iniciativa de Helena Ferro Gouveia: com uma expectativa inicial de juntar 500 euros, o valor das doações atingiu os 63.355 euros. .A família, a conselho da polícia de investigação e da empresa onde é motorista, consideram que “o momento é de reserva e anonimato”. Pai, filho, irmão, companheiro, Tiago, de 41 anos, continua nos cuidados intensivos, em estado grave, ainda que estacionário, depois de ter sido transformado em tocha humana. .São 1:20h da madrugada de 24 de outubro. Tiago estaciona o autocarro da carreira 2769 (Campo Grande-Cidade Nova, Loures). Ao fim de 21 paragens, já sem passageiros, está finalmente no terminal. Prepara-se para sair. Um grupo de nove encapuçados aproxima-se. Pela janela do condutor ainda aberta, um deles lança para dentro do veículo um cocktail molotov. E atinge Tiago. Em combustão, o motorista precipita-se para fora do autocarro. Os atacantes fogem. Os gritos da vítima e o clarão das chamas que entretanto consomem o veículo, depressa uma carcaça, alertam os moradores mais próximos. .É o mais grave de uma série de atos de vandalismo, aparentemente concertados e perpetrados em resposta à morte de Odair Moniz, morto a tiro por um polícia. “O Tiago não matou Odair. O Tiago não é polícia”, escreve o melhor amigo. Tiago tem queimaduras de segundo e terceiro grau nos braços, nas mãos, no tórax, no rosto e na cabeça. As vias respiratórias ficaram comprometidas. Está consciente. .“Vai ser uma recuperação muito lenta. O que mais me choca foi os agressores terem-no deixando ali a arder, sem uma ajuda”, diz um outro amigo. .A combustão humana.Aos primeiros segundos da combustão de um corpo humano, a dor é lancinante, acompanhada, não raras vezes, de perda de sentidos. São segundos brutais, que podem traduzir-se em anos. “As queimaduras extensas, para além da dor excruciante e do pânico que provocam na pessoa atingida, atingem o organismo como um todo, deixando sequelas físicas e psicológicas que podem perdurar por toda a vida”, diz ao DN Luís Cabral, coordenador da Unidade de Queimados da Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra, a maior do país. .As queimaduras por calor provocam desnaturação de proteínas e, portanto, necrose por coagulação. Ao redor do tecido queimado coagulado, agregam-se plaquetas, os vasos contraem e o tecido marginal pode necrosar. O tecido da zona circundante inflama. Os danos à barreira cutânea normal permitem a invasão bacteriana, o extravasamento de líquidos e o comprometimento da regulação térmica. Quando a queimadura atinge mais de 20% do corpo, a perda de líquidos leva a que edemas se generalizem. O paciente incha. A permeabilidade vascular leva à saída de fluidos e de proteínas. A desidratação grave pode levar ao choque hipovolémico, um estado de emergência em consequência da perda de grande quantidade de líquidos e de sangue. A reação é em cadeia: pode gerar débito cardíaco, diurese e insuficiência renal aguda. As queimaduras de terceiro grau atingem toda a espessura da derme, podendo incluir tecidos subjacentes, músculos, tendões e mesmo o osso. Toda a pele é carbonizada - a pele fica rígida, coriácea, branca, acastanhada ou negra. Sem bolhas, com sequelas constantes. .A perda da barreira cutânea, a depressão do sistema imunitário e a presença de tecido necrótico podem facilitar o aparecimento da sépsis, atualmente a primeira causa de morte nos doentes queimados. .“O grande queimado é um doente politraumatizado. As queimaduras de grande extensão vão provocar alterações em todos os aparelhos e sistemas”, diz Luís Cabral. “As queimaduras extensas provocam uma morbilidade prolongada e originam graves sequelas temporárias e/ou definitivas a nível estético, funcional e /ou emocional”. .A fluidoterapia é usada para contrabalançar as perdas de líquido. A balneoterapia, com banhos asséticos, servem o objetivo de reduzir a quantidade de micro-organismos na pele e remover detritos necróticos. .São imediatamente administradas grandes quantidades de líquidos intravenosos em pessoas que sofrem de desidratação, choque ou queimaduras que cobrem uma grande área do corpo. .E depois há a dor. Em repouso ou a que está associada a procedimentos de reabilitação e tratamento. Durante o internamento, vai evoluindo. Inicialmente, aumenta devido à remoção do tecido lesado, diminuindo à medida que as áreas são cobertas de pele sã. Posteriormente, tende a aumentar, por sensibilidade exagerada, ou em consequência da fisioterapia. A dor pode tornar-se crónica. .“Há uma forte associação entre queimaduras, dor crónica e patologia psiquiátrica, nomeadamente perturbação do stress pós-traumático, depressão, ansiedade e perturbações do sono, com um grande impacto tanto a nível físico, como a nível socioprofissional.”, diz o clínico. .“Porquê a mim?” As vítimas de ataques inesperados e injustificados perdem a perceção de segurança. Ganham medo intenso ou ansiedade sempre que sai de casa. Podem experimentar ondas de pânico. De horror. E culpa. Precisam de entender por que razão o crime aconteceu. Por vezes, é mais fácil assumir culpa: “se eu tivesse...”, repetem os sobreviventes desses ataques. “Se eu tivesse fechado a janela”. .Flashbacks e pesadelos sobre o crime são comuns. Os sentimentos de raiva, que podem ser intensos e intermitentes, fazem parte do processo de recuperação. Há vontade de vingança. A depressão e a solidão crescem à medida da morosidade da justiça na condenação dos culpados. Um isolamento progressivo é também consequência das mudanças de humor e da irritabilidade. .A figura parda.“Podemos considerar estar perante uma tentativa de homicídio duplamente qualificado, pois o lançamento do cocktail molotov traduz-se na prática de ato idóneo a produzir a morte do motorista, tendo sido utilizado um meio que se traduz na prática de um crime de perigo comum (crime de explosão), e o facto foi praticado contra um cidadão encarregado do serviço público de transporte”, defende Teresa Quintela de Brito. A pena para o crime consumado é de 12 a 25 anos de prisão, cujo limite máximo será reduzido em um terço por se tratar de crime tentado. .“Os membros do grupo que o acompanhavam responderão, em qualquer caso, pelo crime de omissão de auxílio”, com prisão até um ano ou multa até 120 dias, acrescenta a professora de Direito Penal e de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. . “Se não se provar o dolo de homicídio”, acrescenta Quintela de Brito, “o autor do lançamento do cocktail molotov responderá, pelo menos, pelo crime doloso consumado de ofensas graves à integridade física. Qualificado pela utilização de meio que se traduz na prática de um crime de perigo comum e prática do facto contra cidadão encarregado do serviço público de transporte”, com uma pena de prisão de 3 a 12 anos. .Quanto ao lançamento do cocktail molotov e à destruição do autocarro, a jurista considera o crime de dano doloso consumado, duplamente qualificado por se tratar da destruição de coisa destinada ao uso e utilidade públicos ou a serviços públicos, com prisão até 5 anos ou multa até 600 dias. E ainda, de coisa de valor consideravelmente elevado, com prisão de 2 a 8 anos, “porventura agravado por ter sido cometido com violência contra uma pessoa”. .A jurista exclui a possibilidade de se estar perante infrações terroristas. No entanto, acrescenta: “Caso se prove que todos os que tomaram parte nos atos de vandalismo e violência fazem parte de um grupo, organização ou associação cuja finalidade ou atividade seja dirigida à prática de um ou mais crimes, então os mesmos poderão responder, em concurso efetivo com os crimes por eles cometidos, por um crime de associação criminosa”. .“O Tiago tem sido a figura parda de toda esta tragédia”, começa por dizer Paulo Saragoça da Mata, que defende a tese de tentativa de homicídio. “Ninguém que atire um cocktail molotov está à espera de que a pessoa não fique marcada para o resto da vida”. Quanto à possibilidade de terrorismo, é um caso a ver: “Considerando que os atos foram resultantes de uma convocação por parte de grupos, a partir de distribuição geográfica diferente, com clara intencionalidade de subversão da ordem, podemos considerar essa possibilidade. O modus operandi é o mesmo. As redes usadas para a difusão são exatamente as mesmas. No primeiro dia, ainda poderia haver uma ligação à morte de Odair, mas a partir daí é claro que esses atos nada tiveram a ver com a morte de Odair”. Para o jurista, “trata-se de comunidades criminosas que se escondem por detrás de bairros sociais onde mora e vive gente trabalhadora, mas esquecida pelas autoridades”. .Paulo Saragoça da Mata lembra que compete ao procurador acionar o fundo do Estado para as vítimas de crimes violentos. “É o caso evidente de Tiago”. .Tiago nasceu no mês do Natal. Está prestes a atingir os 42 anos. “Aparenta ter 30 e poucos”, dizem os amigos. “Cuida muito dele e por isso temo, temo muito o que pode aí vir”, diz um dos mais próximos. .Estava, acrescenta, numa fase feliz da vida. “Ia deixar, finalmente, de ser doente oncológico”. .Trancas à porta.A Rodoviária de Lisboa (RL) já acionou o seguro de trabalho de Tiago. “Temos estado, e continuaremos a estar, em permanente contacto com a família de Tiago”, informa o gabinete de comunicação da empresa. .A primeira ordem foi dada poucas horas depois do ataque a Tiago. “Manter os vidros fechados”. Nesse mesmo dia, foi emitido um comunicado a todos os trabalhadores: circular com as janelas fechadas, em especial a janela do motorista; manter as portas do autocarro abertas apenas pelo tempo necessário para a entrada e saída de passageiros; em terminal, manter-se sempre no interior do autocarro com as portas e janelas fechadas, especialmente no período noturno; caso esteja a efetuar tempo de terminal num local isolado, contactar o Centro de Controlo para, em conjunto, definirem um melhor local para efetuar esse tempo; se for detetada alguma situação que pareça suspeita - ajuntamento de pessoas encapuzadas, movimentações suspeitas de grupos de indivíduos, bloqueios na via, etc. - informar de imediato o Centro de Controlo. “Temos monitorizado, desde o primeiro minuto, com todos os meios disponíveis e com a maior atenção, o serviço de cada motorista e estamos em permanente contacto com todas as forças de segurança, no sentido de uma cooperação preventiva e reativa, de forma ágil e rápida, tendo sido criado um canal direto e rápido entre a RL e as Forças de Segurança”, diz ainda ao DN o gabinete de comunicação da empresa. .A ideia avançada por Carlos Moedas - um polícia em cada autocarro - é considerada “inviável” pela Carris Metropolitana: “São cerca de 1700 autocarros. Isso obrigaria à afetação de mais de 3000 agentes, todos os dias”.