Tania Combret Ramos: "Há um tratamento discriminatório com as vacinas da covid na Europa"
Cuba desenvolveu as suas próprias vacinas contra a covid-19, mas decidiu agora usar também a vacina chinesa. Porquê?
Cuba tem cinco vacinas em desenvolvimento, das quais três têm autorização de utilização de emergência: a Soberana 02 e a Soberana Plus, que é uma vacinação heteróloga [misturam-se doses de ambas], e a Abdala. O que acontece é que a população cubana não está ainda totalmente vacinada. Os números mudam todos os dias, mas temos com pelo menos uma dose cerca de seis milhões de pessoas. As três vacinas requerem desde o início três doses, e aí chegámos a quase quatro milhões de pessoas. Ainda não conseguimos vacinar toda a população e é muito importante avançar rápido, ganhar a corrida à disseminação da doença. O problema foi a variante Delta, que tem uma transmissibilidade muito maior do que as variantes anteriores. No mês de setembro prevemos entregar ao sistema de saúde público mais dois ou três milhões de vacinas cubanas, mas quanto mais cedo vacinamos melhor. Cada vez que me perguntam qual é a melhor vacina, eu respondo a primeira que se possa apanhar, porque o importante é estar vacinado antes de chegar a infeção. Em relação à vacina chinesa, recebemos um donativo de Sinopharm, que é uma vacina com o vírus inativo. É a terceira que mais se usa a nível mundial, com eficácia demonstrada, pré-qualificação da OMS e autorização de uso de emergência. Acho que mais de 87 países a usam. Quanto ao ponto de vista de eficácia, é de 79%. Então, o Comité de Ciências decidiu uma combinação de duas doses da Sinopharm com uma da Soberana Plus, que, como todas as vacinas cubanas, se baseia numa das proteínas mais importantes do vírus, o RBD. A combinação de ambas é uma vantagem.
E qual é a eficácia das cubanas?
As vacinas cubanas são muito boas. Os dois ensaios têm mais de 40 mil pacientes. No caso de Abdala, a eficácia foi de 92,28% de proteção contra a doença sintomática. No caso da Soberana, 91,2%. Mas na proteção contra a forma grave da doença ambas tiveram 100%. Ou seja, nenhum dos pacientes que foi vacinado teve uma forma grave ou crítica da doença e nenhum deles morreu. Foi muito eficaz do ponto de vista das formas graves de covid.
Já estão a pedir a aprovação da Organização Mundial de Saúde?
Sim, estamos a começar as reuniões com a OMS e já começámos o processo de pré-qualificação com a Organização Pan-Americana de Saúde. A nossa responsabilidade é sempre vacinar a população cubana, mas, uma vez que tenhamos completado essa vacinação, podemos ver o processo de uso noutros territórios, apesar de não ser preciso autorização. Cuba poderia fazer ensaios clínicos de fase três ou comercializar a vacina sem aprovação do processo na OMS. Aqui na Europa dá-se o caso curioso de muitas vacinas já terem sido aprovadas pela OMS mas não serem aceites. Só se pode entrar livremente em Portugal com quatro vacinas. A Agência Europeia do Medicamento (EMA) é muito mais restritiva. Há, de alguma maneira, um tratamento discriminatório com as outras vacinas na Europa. As nossas não são reconhecidas cá. Tivemos que fazer um teste PCR para poder entrar em Portugal, apesar de estarmos vacinados e termos uma muito boa resposta imunológica. Mas não é só a vacina cubana, nenhuma da China é reconhecida pela EMA.
Por causa do embargo, tiveram problemas para ter acesso a material para produzir a vacina?
Sim, tem sido muito difícil o processo de importação de materiais. Há uma perseguição financeira importante, que o governo de [Joe] Biden até aumentou. Nem tendo os recursos financeiros disponíveis foi fácil que os fornecedores ou os bancos aceitassem fazer a transação financeira. E isso atrasou a entrega de vacinas. A intenção que tínhamos era que 70% da população cubana já tivesse as três doses, mas atrasámo-nos porque foi um processo muito moroso importar todos os materiais, incluindo de fornecedores que historicamente forneceram a indústria farmacêutica cubana. Mais, temos quatro artigos científicos que já foram aceites para publicação e ainda não foram publicados porque nenhum banco aceita fazer a transação financeira. Até na divulgação dos dados científicos há dificuldade.
Concorda que os países mais ricos estejam já a avançar para as doses de reforço?
A pandemia não vai parar enquanto os pobres não forem vacinados, mas os países ricos estão a ficar com todas as vacinas para terceiras e quartas doses. Estamos conscientes de que até que a população a nível mundial se imunize a pandemia não vai ficar controlada. Porque vão surgir variantes resistentes. Para proteger a saúde mundial não basta que os países ricos tenham três ou quatro doses de vacinas, porque o nível de mobilidade que há no mundo faz com que a disseminação de qualquer variante resistente seja muito rápida. Enquanto a humanidade, como um conjunto, não se proteger, não vamos conseguir o controlo da pandemia. Os países ricos têm mais de 70% da população vacinada, os países pobres têm menos de 5%. As farmacêuticas que têm que entregar as vacinas ao mecanismo Covax não estão sequer a cumprir os seus compromissos. Vão para quem paga mais.
Deviam levantar-se as patentes?
Defendemos que, em época de pandemia, as leis de patentes não devem prevalecer, pelo contrário, é preciso partilhar conhecimento, transferir tecnologia. É a única forma de ter, a curto prazo, a quantidade suficiente de vacinas para todos. A proteção da patente é de 20 anos, se temos que esperar que passem 20 anos para ter um genérico, as perdas humanas vão ser equivalentes à gripe espanhola, com 50 milhões de mortos.
susana.f.salvador@dn.pt