O setor da aviação tem aumentado a procura por biocombustíveis, à medida que está obrigado a incorporar todos os anos percentagens crescentes de SAF (combustíveis mais sustentáveis para a aviaç&a
O setor da aviação tem aumentado a procura por biocombustíveis, à medida que está obrigado a incorporar todos os anos percentagens crescentes de SAF (combustíveis mais sustentáveis para a aviaç&a

Suspeita de fraudes nos biocombustíveis abre investigação no setor energético

A importação de biocombustíveis disparou 20 vezes em cinco anos e a produção nacional já está a ressentir-se. Mas há suspeitas de fraude com óleos alimentares usados vindos da China. A ENSE admite ser difícil garantir a sustentabilidade do biodiesel importado.
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O mercado dos biocombustíveis que circulam em Portugal vai ser alvo de uma fiscalização por suspeitas de fraude na obtenção dos certificados verdes, apurou o DN junto da Entidade Nacional para o Setor Energético (ENSE). A ação a levar a cabo por aquele que é o organismo competente nesta matéria surge na sequência de alertas lançados em alguns países europeus, no final de 2023, relativos à suspeita de fraude na importação de óleos alimentares usados para produção de biodiesel, maioritariamente oriundos da China.

Países como a Alemanha, a Irlanda e a Itália já anunciaram o avanço de investigações oficiais, ao mesmo tempo que a Comissão Europeia também manifestou a intenção de levar esta denúncia muito a sério, bem como a suspeita de que óleos alimentares usados da Indonésia estão a entrar na União Europeia (UE), via China e Reino Unido, para fugir ao fisco.

A ENSE confirmou ao DN que “colabora com as investigações conduzidas pelo OLAF (European Anti-Fraud Office) que incidem sobre a suspeita da emissão e circulação de falsas declarações de matérias-primas e respetiva sustentabilidade, violando a Diretiva de Energia Renovável (RED II) da UE”.

Organizações ambientalistas têm denunciado que a importação de biocombustíveis de países asiáticos está a funcionar como uma porta de entrada de óleo de palma, cuja produção intensiva é nefasta para o meio ambiente. Este estará a ser falsamente etiquetado como resíduo de óleo de palma (POME), produto considerado mais sustentável e por isso ‘bonificado’.

Em causa está uma distorção de mercado causada inadvertidamente pela subsidiação destas chamadas “matérias-primas avançadas” para a produção de biocombustíveis. O objetivo é descarbonizar gradualmente o setor do transportes, rodoviários e aéreos, que estão obrigados a incorporar uma percentagem anual crescente de SAF (sustainable aviation fuel) até 2050, por não conseguirem ainda aderir em massa ao hidrogénio.

Ao abrigo desta política ambiental, a cotação dos resíduos do óleo de palma, por exemplo, já é muito mais alta do que a própria matéria-prima virgem, o que potencia a troca de um produto pelo outro, para obtenção de vantagem económica, disse ao DN o secretário-geral da Associação Portuguesa de Produtores de Bioenergia (APPB). “Quando o incentivo é muito forte e o valor da matéria-prima virgem fica muito baixo em termos comparativos, o risco de fraude aumenta”, resume Jaime Braga.

Importação de óleos usados dispara

Tal como na União Europeia, onde as importações mais do que duplicaram desde 2015, Portugal importa cada vez mais óleos alimentares usados, 60% dos quais oriundos da China. Num ranking de sete países, é mesmo apontado como o quinto maior importador na UE, segundo a ONG Transport &Environment.

“Se até há dois ou três anos, as compras de biocombustíveis (produto final) ao exterior eram residuais, da ordem dos 12%, com o mercado essencialmente abastecido pelo fabrico nacional, tudo mudou desde 2021, com as importações a representarem perto de 40% do mercado”, atesta o representante da APPB. O ponto de viragem terá sido o efeito combinado da limitação a 3,1% do uso de óleos virgens permitidos na UE e de uma alteração no Orçamento de Estado que passou a isentar de ISP (imposto sobre produtos petrolíferos) as chamadas ‘matérias avançadas’. Tratam-se de matérias processadas a partir de efluentes de palma, oleínas ácidas e resíduos da indústria agroalimentar. “Esta isenção, que é uma excepcionalidade nacional, não tendo paralelo na generalidade dos países europeus”, está a ter um efeito de aceleração nas importações, que também são abrangidas pela isenção, deixando os pequenos produtores nacionais em desvantagem com as importações de companhias petrolíferas.

E os dados da produção nacional parecem refletir isso mesmo. Desde 2017 até 2020, Portugal produzia sempre acima das 300 mil toneladas de biocombustíveis, tendo chegado às 353 mil em 2019, mas, desde então, tem reduzido a sua produção que, em 2022, se ficou pelas 274 406 toneladas, segundo dados fornecidos ao DN pela ADENE – Agência para a Energia, a partir dos números da Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG).

Inversamente, as importações, no mesmo período, cresceram de modo dramático cerca de 20 vezes, passando das 4171 toneladas para as 84 892 toneladas em 2022. A fatia de leão (70%) vem de Espanha, mas também dos Países Baixos, da Itália, Bélgica e Finlândia. Segundo dados avançados pela APPB, já no final do terceiro trimestre deste ano a produção tinha voltado a cair para 196 mil toneladas, enquanto as importações continuaram a galopar para as 103 mil toneladas.

Confiar nos certificados

Os biocombustíveis importados que estão em circulação já têm a incorporação das matérias avançadas feitas quando chegam ao território nacional, escapando ao controle direto e prévio da ENSE e do Laboratório Nacional de Engenharia e Geologia (LNEG), refere aquele responsável. Só os que são misturados com produtos petrolíferos em território nacional por empresas com refinaria (Galp e Prio) passam pelos testes laboratoriais regulares e são fortemente fiscalizados, acrescenta Jaime Braga. Os outros têm apenas de apresentar às autoridades um certificado de sustentabilidade emitido nos países de origem a atestar que o produto está conforme.

Sobre o biocombustível importado, a ENSE confirma, em declarações ao DN, que quando “a documentação analisada em território nacional está conforme, qualquer investigação fora do território nacional dependerá da cooperação e investigação de organismos europeus”, pois “exige a necessidade de acesso a provas e evidências” e a toda a cadeia de valor.

Mas, em resposta ao DN sobre até que ponto pode garantir que um biocombustível é realmente ‘verde’, também refere que, uma vez misturado, não há meio de o confirmar por laboratório. “Não existem análises laboratoriais que permitam determinar se os biocombustíveis cumprem os critérios de sustentabilidade, sejam combustíveis importados ou produzidos em Portugal. Para um biocombustível – enquanto produto final – apenas é possível verificar se este está em conformidade com as normas técnicas europeias e/ou nacionais de qualidade, como é o caso do Biodiesel (FAME)”.

Em Portugal, este mercado vale cerca de 500 milhões de euros e, além da Galp (a líder), conta com oito operadores licenciados para produção de biocombustíveis, cinco dos quais associados da APPB. São eles a Prio, NRFuels, Biovegetal, Fábrica Torrejana de Biocombustível, Sovena, Bioport,Bioadvance e Mainbio, havendo também pequenas unidades que pertencem a municípios. Mas as multinacionais importadoras controlam mais de um terço do mercado.

Títulos verdes à venda

Para além das dúvidas que pairam sobre a real sustentabilidade dos biocombustíveis que circulam no mercado, existem também algumas perplexidades sobre o modo como se está a tentar cumprir a meta fixada de incorporação de 11,5% de biocombustíveis no mix energético nacional. A incorporação real ronda os 6,5%, mas depois “há um modo administrativo de chegar à meta”, que se contabiliza dando uma dupla contagem à quantidade de matérias residuais, designadamente ‘avançadas’ (valem por dois) e que permite chegar a uma taxa de incorporação de 9,55%. “O remanescente é compensado recorrendo a uma espécie de bolsa de compra e venda de títulos, onde empresas que não quiseram incorporar vão a essa bolsa e compram os títulos de sustentabilidade”. “É tudo legal”, confirma o secretário-geral da APPB, Jaime Braga. Mas, como o próprio admite, “o efeito sobre o clima não é administrativo, só responde ao que se mete no combustível.” Por explicar fica a razão pela qual a lei foi feita com este figurino e à medida de quem.

A APPB defende que o Governo seja mais ágil do que tem sido a transpor a diretiva comunitária que aumenta a taxa de incorporação real. Porque isso “é fundamental para a reduzir a curto prazo as emissões dos transportes”, podendo Portugal “poupar até um milhão de toneladas em emissões de dióxido de carbono por ano, por via dos biocombustíveis”.

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