"Se quisermos evitar situações mais graves devem ser já aprovadas medidas mais restritivas"

A variante Ómicron é mais contagiosa do que a Delta. E o combate à doença deve refletir isso mesmo. Carlos Antunes, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, diz que, nesta fase, já se deveria estar a reforçar os recursos da saúde pública, a limitar a lotação de pessoas em espaços fechados e a ter teletrabalho obrigatório. Senão, em janeiro podemos ter entre 10 mil a 12 mil casos, quase o pico que tivemos no ano passado.
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O primeiro-ministro António Costa anunciou ontem, em direto de Bruxelas, que as medidas restritivas em vigor poderiam ser prolongadas para lá de 9 de janeiro, altura em que termina o estado de calamidade decretado a partir de 1 de dezembro. Mais tarde, a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, pedia aos portugueses que limitassem os contactos nessa primeira semana de janeiro, mas há especialistas que já dizem que só isso não chega para evitar uma situação mais grave.

Ao DN, Carlos Antunes, professor da Faculdade de Ciências (FC) da Universidade de Lisboa defende mesmo: "Se quisermos evitar uma situação mais grave devem ser aprovadas já medidas mais restritivas". O professor que integra a equipa da FC que desde o início da pandemia faz a modelação da evolução da doença vai mais longe: "Nessa altura, pode não bastar o prolongamento das medidas, podemos ter de puxar um travão de mão mais forte".

Na opinião deste especialista, os governantes e o país já deveriam ter aprendido alguma coisa com os quase dois anos de pandemia, por isso, diz, "temos de ser proativos e não reativos, como temos sido sempre".

Carlos Antunes sustenta que se queremos diminuir o ritmo de crescimento de novos casos, até perante a ameaça da nova variante, Ómicron, sobre a qual já se sabe que é mais contagiosa do que a Delta, "é preciso avançar em duas frentes, com medidas de reforço dos meios da saúde pública, como de rastreadores de contactos, para se quebrar mais cedo as cadeias de transmissão, e aumentar a capacidade de testagem, tentando mantê-la igual ao fim de semana". Por outro lado, especifica, "já se deveria estar a tornar o teletrabalho obrigatório, porque é a medida que mais reduz a circulação e a exposição ao risco, e a impor limites à lotação de pessoas em espaços interiores".

A memória do que foi o Natal passado e os meses de janeiro e de fevereiro não pode ser apagada. É verdade que, este ano, a pandemia em Portugal será mediada por uma cobertura vacinal de cerca de 88%, o que é muito superior à de outros países, que vivem situações muito complicadas e que já estão a tomar decisões mais restritivas.

No entanto, salienta o especialista da Faculdade de Ciências, "olhando para os números, embora haja alguma incerteza, as previsões apontam para que, nas próximas semanas, possamos chegar aos 10 mil ou aos 12 mil novos casos. Tudo dependerá se já tivermos ou não a nova variante como dominante".

Por isto, sublinha, "tendo este cenário, a solução é o reforço de medidas. Agora, cabe aos especialistas definirem o que é melhor em termos de menor impacto para a economia", admitindo que "não podemos fechar tudo, ninguém quer isso, sobretudo nesta época do ano, mas é preciso tomar medidas que possam reduzir o contágio. Temos de avaliar o beneficio e o risco desta fase da pandemia".

Na sua perspetiva, uma das medidas que deveria ser já tomada "é o limite de lotação nos restaurantes, nos eventos, nos transportes públicos e em outros espaços interiores". E em relação à obrigatoriedade do teletrabalho diz que "se antecipássemos esta medida a Ómicron teria menor impacto. Estou certo disto".

No fundo, só voltando a algumas das medidas que já foram impostas nas vagas anteriores "é que conseguiremos conter a evolução da doença. Caso contrário será difícil", argumenta. Embora, "haja uma diferença entre Portugal e outros países, como o Reino Unido ou a África do Sul, que tem a ver com o facto de termos uma cobertura vacinal superior à deles. No geral, temos maior proteção".

Carlos Antunes confessa até que "gostaria de estar errado, mas já fiz várias simulações de R(t), calculados para os EUA, para o Reino Unido, para a África do Sul, Dinamarca, Noruega, extrapolando para Portugal, e mesmo assumindo que a nossa cobertura vacinal é superior, não nos devemos livrar dos tais 10 mil a 12 mil casos diários até ao fim do ano", o que "é praticamente o pico do ano passado em janeiro".

Recordando que, no ano passado, quando se partiu da segunda para a terceira vaga estávamos com 3000 casos diários, agora partimos para a 6.ª. vaga com 4200. Portanto, o ponto de partida da variante Ómicron é superior ao da Delta e "se quisermos antecipar e travar uma situação mais grave em janeiro temos de atuar já. Hoje (ontem), o Conselho de Ministros deveria estar a aprovar mais medidas. A obrigatoriedade da máscara não chega".

O especialista lembra que, no último relatório das Linhas Vermelhas publicado pelo Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA), o país ainda estava sob influência da variante Delta, já que a presença da Ómicron era da ordem dos 9% a 10%, mas "é preciso dar atenção a outros indicadores que estão no relatório e que são muito importantes, porque podem impactar os cuidados no Serviço Nacional de Saúde (SNS)". E dá exemplos: "Na semana passada, o relatório do INSA referia que estavam a trabalhar cerca de 600 rastreadores, segundo os especialistas, cada um consegue, no máximo, rastrear os contactos de seis novos casos por dia. Ora, isto, ao fim de dez dias, equivale a 60 contactos, se cada caso tiver, no mínimo, três contactos para fazer, ao todo são 180 contactos".

A questão é que os 600 rastreadores já não chegam. Na semana passada, "havia 600, mas precisávamos de 700. Já estamos aquém das necessidades, imagine se chegarmos aos 6000 casos, aí precisamos de 1000 rastreadores e se chegarmos aos 12 mil casos vamos precisar de 2000". No ano passado, relembra, o máximo que tivemos foi de 1400, e se, neste momento, "já não temos os rastreadores necessários, isso quer dizer que há casos que podem ser detetados mais tardiamente".

Por isso, defende: "Neste momento, já se deveria estar a fazer todos os esforços para termos a capacidade máxima que conseguíssemos de rastreadores para "não irmos atrás do prejuízo". Mas para Carlos Antunes, além do indicador dos rastreadores, há outro igualmente "importante e através do qual percebemos que estamos a ficar atrasados. É a percentagem de contactos que foram identificados, contactados e rastreados".

O relatório do INSA indicava que, até à semana passada, "os contactos de novos casos rastreados estava abaixo dos 70%, quando deveria estar acima dos 90%. Isto é um indício claro de que os rastreadores já não têm capacidade de resposta".

Mas há mais. A testagem é outro indicador se estamos a ter ou não controlo na infeção. Como salienta o professor, "houve um esforço extraordinário em novembro para se aumentar a testagem, mas, neste momento, já há farmácias com agendas cheias para a realização de testes e autotestes esgotados. E isto não pode acontecer", exemplificando: "Na quarta-feira, o país chegou aos 70 mil testes PCR diários, mas para mantermos a positividade da testagem abaixo dos 4%,quando chegarmos aos 6000 casos deveríamos estar a fazer 150 mil por dia e se chegarmos aos 12 mil teríamos de fazer 300 mil".

O que significa que "a capacidade de testagem teria de duplicar e o país, provavelmente, não tem essa capacidade. Para os laboratórios estarem a testar no seu máximo teriam de deixar para trás outras análises e outras doenças", argumenta.

O epidemiologista concorda que, apesar de já estarmos a viver a 5.ª vaga, não é fácil gerir a situação, por isso mesmo, e para não ficarem também para trás os cuidados primários, os internamentos e cuidados intensivos de outras doenças, é preciso "agir".

As medidas referidas não são novas. Aliás, há quase dois anos que se fala na combinação de medidas de saúde pública e de proteção individual e coletiva para reduzir a exposição ao vírus e suprimir os contágios. Foi assim no ano passado, pode ser assim este ano: "A melhor solução será avançar já para tais medidas, porque o comportamento das pessoas pode não ser o mais adequado e potenciar ainda mais o aumento dos casos".

Carlos Antunes reforça o alerta: "É preciso olhar para todos os indicadores das linhas vermelhas e não ficarmos só a basear-nos nas 250 camas de cuidados intensivos que são a linha de risco". Os internamentos em UCI mantém uma taxa de 4% relativamente ao total de casos, se esta proporção se mantiver e se chegarmos aos 12 mil casos teremos 480 a 500 internamentos, o que ultrapassa o limite definido da linha vermelha. Em termos de óbitos, se a taxa for da ordem dos 10% ou 20% teremos 50 a 100 óbitos diários, o que é muito".

Para o professor, "as pessoas começam a antecipar o que aí vem, mas o ideal era que a decisão viesse de cima e com medidas restritivas, com o menor impacto possível na economia, mas que pudessem suster a contenção da doença".

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