"Resposta das UCI é gerível, mas se tiver de aumentar será à custa dos outros doentes"

Na região de Lisboa e Vale do Tejo, a ocupação de camas nos cuidados intensivos está nos 86%, já esteve nos 90% e já houve doentes que tiveram de ser transferidos para outras regiões. No norte, na semana passada, o aumento de casos fez duplicar em 50% os internamentos, sendo expectável que nesta semana aumente ainda mais. Quem está no terreno diz que a resposta é gerível, mas se casos continuarem a subir, esta terá de ser à custa dos doentes não covid.
Publicado a
Atualizado a

O número de casos de covid-19 em Portugal continua a surpreender. Só ontem foram registados quase tantos (2650) como no dia 13 de fevereiro (2856), altura em que a terceira vaga começava a atenuar. Neste momento, a situação só não é tão preocupante porque quando se olha para os números de internamentos ou de óbitos a realidade é outra. Enquanto ontem havia 742 pessoas internadas, das quais 131 em unidades de cuidados intensivos (UCI), a 13 de fevereiro havia 4850, das quais 803 em UCI. E o mesmo acontece em relação aos óbitos: ontem registaram-se nove, a 13 de fevereiro foram 149. Quem está no terreno reconhece que o impacto que a doença está a ter agora nada tem que ver com o das anteriores vagas, sobretudo no período de janeiro e fevereiro, mas se tal é assim "é graças à vacinação", sublinha ao DN o coordenador da Unidade de Cuidados Cirúrgicos do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, António Pais Martins.

Para este médico, a resposta que está a ser dada pela medicina intensiva "ainda é gerível, mas não pode aumentar muito mais, senão terá de ser à custa da resposta que estamos a dar aos doentes não covid", alertando mesmo para o facto de a ocupação de camas na região de Lisboa e Vale do Tejo, nas últimas semanas, "já ter chegado aos 90% e mais. Nestes dias está nos 86%, mas, nas semanas anteriores já tivemos necessidade de transferir doentes, por exemplo para unidades do Alentejo, para se acautelar uma resposta mais efetiva aos outros doentes".

Pais Martins, que também é diretor da secção de medicina intensiva da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia, relembra que desde o início da pandemia que a resposta a nível da medicina intensiva é feita em rede no Serviço Nacional de Saúde (SNS): Lisboa e Vale do Tejo tem três grandes centros de referência e várias outras unidades, "mas não podemos correr o risco de o sistema voltar a ficar saturado". E para isso, sublinha o especialista, "é necessário que a população continue a cumprir as regras de proteção individual. Só assim será possível conter a transmissão e evitar mais hospitalizações".

António Pais Martins reforça mesmo que a diferença desta vaga para as anteriores é o processo de vacinação. "A nossa sorte é que temos o grupo dos mais idosos quase todo vacinado, senão seria muito mais complicado". Mesmo assim, e quando olha para o número de casos que estão a marcar o início desta semana e a subida nos internamentos, não deixa de desabafar: "Quem diria? Ninguém no país poderia imaginar que, mesmo com o desconfinamento, voltássemos a ter milhares de casos por dia, mas esta situação não está a acontecer só em Portugal. É muito semelhante em outros países, veja o que se passa em Espanha, por exemplo em Barcelona, no Reino Unido ou na Bélgica, e tudo por causa da nova variante." E se há alguma tranquilidade no terreno, argumenta, "é por causa da vacinação, e quanto mais se acelerar este processo mais será possível travar as hospitalizações, mas é necessário que a população, sobretudo a mais jovem, também a aceite". Até porque, e como refere, esta variante não veio trazer só um aumento na transmissão da doença, mudou também o perfil do doente que dá entrada nos cuidados intensivos. "Neste momento, tenho nove pessoas internadas na minha unidade, com idades entre os 35 e os 48 anos. E se no início havia uma característica nestes doentes, homens e a maioria com excesso de peso ou mesmo obesidade, agora, embora não haja números que indiquem ser um padrão, estamos a receber doentes saudáveis e sem comorbilidades. O que para nós é uma situação preocupante."

Lisboa e Vale do Tejo é a região com maior pressão no aumento de casos desde o início de maio - vindo sempre a registar 40% a 60% dos casos de todo o país. Só ontem tinha 1141 casos, de um total nacional de 2650. António Pais Martins refere ao DN que, se não houver uma redução de casos na região, o período de férias que aí vem para muitos dos profissionais de saúde e nomeadamente da medicina intensiva pode estar em risco.

A variante Delta, cuja origem está associada à Índia, está em força na comunidade. Aliás, segundo o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo e no Algarve 100% dos casos têm a sua marca. Para quem está no terreno foi a Delta que veio mudar de novo as regras do jogo. Entrou na Europa pelo Reino Unido e rapidamente se espalhou por mais 90 países incluindo Portugal.

José Artur Paiva, diretor do Serviço de Medicina Intensiva do Centro Hospitalar Universitário São João, no Porto, diz mesmo: "Esta variante veio introduzir o que chamo de game changer. É bastante mais transmissível do que as outras, mesmo em relação à variante Alpha, do Reino Unido, em cerca de mais 70%, e é também mais invasiva, tem mais facilidade de entrar nas células do hospedeiro, e isto fez que acelerasse a transmissão da doença. Isto é o lado negativo desta variante. O lado positivo é que a vacinação em relação à variante Delta mantém um grau bastante elevado de efetividade contra a doença grave", diz, especificando: "Quando falo em game changer é no sentido em que a transmissão foi acelerada significativamente e talvez não tenhamos tido essa perceção, tal como se teve em relação à variante Alpha." E o resultado está à vista: "Um aumento significativo de casos na comunidade que levou a um aumento de hospitalizações. Há um percentual dos casos positivos que corresponde a um percentual de hospitalização. Portanto, sabíamos que as hospitalizações iriam aumentar, mas a boa noticia é que este percentual agora é muito mais baixo do que foi nas vagas anteriores."

José Artur Paiva afirma que o aumento de internamentos "não é uma surpresa", sublinhando que, nas últimas semanas, o aumento de entradas em medicina intensiva foi de 35%, embora com uma distribuição bastante heterogénea no país. "Em Lisboa e Vale do Tejo os números continuam a ser elevados, mas já num planalto, o aumento na última semana foi de 11%. No Algarve, na semana que terminou, os internamentos subiram muito (60%), mas esta aceleração já parece ser agora menor. No norte, estamos a ter uma aceleração, na semana passada os internamentos em medicina intensiva aumentaram 50%. Só que a partir de números relativamente baixos". Mas com o aumento de casos - ontem a região norte voltou a ser a segunda com maior número (939) - "é expectável que nas próximas semanas as admissões na medicina intensiva ainda aumentem mais". "O lado positivo é que estamos ainda com alguma folga na resposta. À exceção de Lisboa e Vale do Tejo, a taxa de ocupação nas outras regiões é de 50% a 60%. No norte, por exemplo, os internamentos em UCI estão a aumentar, mas ainda não tivemos necessidade de transferir doentes para outras regiões", diz José Artur Paiva, sublinhando, no entanto, que "a resposta nacional à covid ainda é gerível". "As linhas vermelhas não são fixas e o segredo está em adaptar-se a resposta à procura de doentes, promovendo, sempre que necessário, a transferência entre hospitais da mesma região ou entre regiões."

No sul ou no norte, a mensagem é a mesma. Se por um lado há preocupação, porque os casos continuam a aumentar, por outro há tranquilidade, porque, "ainda há uma folga na resposta", mas a população tem de cumprir a s regras de proteção.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt