Dália Costa e Cidália Pecegueiro são coautoras da obra Prisão Paralela
Dália Costa e Cidália Pecegueiro são coautoras da obra Prisão ParalelaReinaldo Rodrigues/Global Imagens

“Qualquer um de nós pode vir a ter um familiar preso ou cometer um crime”

Qual o impacto, na vida de alguém, de ter um familiar preso? Esta é a questão central do livro Prisão Paralela que, através de 24 relatos, oferece uma perspetiva alargada de sentimentos e vivências de quem tem familiares na prisão.
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“Pablo é colombiano, tem vinte e quatro anos, está a frequentar um mestrado em Neurotecnologia, em Inglaterra, e tem o pai a cumprir pena de prisão em Portugal. A notícia da sua detenção chegou-lhe como uma bomba. (...) Foi muito duro. Fiquei em choque e tive dificuldade em compreender o que estava a acontecer. Parecia que o meu mundo começava a desmoronar-se. Tive um sentimento de enorme impotência, tristeza e uma dor intensa. Nem sequer conseguia engolir, e o coração estava tão acelerado que comecei a hiperventilar. Foi uma sensação de ansiedade, de agonia e desorientação como nunca tinha tido”. Esta é uma passagem de um dos  24 depoimentos recolhidos por Cidália Pecegueiro, jornalista e aluna de doutoramento em Estudos de Género, que compõem o livro Prisão Paralela, lançado esta sexta-feira, 7, no Cinema Europa em Lisboa, pelas 18:00. 


Foi precisamente no âmbito da tese de doutoramento - que aborda relações sentimentais de mulheres que, estando em liberdade, iniciam um relacionamento com reclusos -  que a jornalista se interessou por saber mais sobre o que sentem os familiares de quem tem alguém na prisão. “É necessário dar visibilidade às necessidades das várias pessoas envolvidas: os reclusos, os familiares, os guardas prisionais. Juntei-me à professora Dália Costa, que é a minha orientadora de doutoramento, e, em conjunto, começamos a fazer uma investigação que envolvesse cada uma destas partes. Este livro é resultante de uma investigação com familiares de reclusos”, explica a coautora de Prisão Paralela, com capa da ilustradora Cláudia Ferro.


Enquanto Cidália Pecegueiro se encarregou de recolher os depoimentos - a que as autoras preferem chamar ecos biográficos - Dália Costa, doutorada em Sociologia e professora de Criminologia, tratou de os analisar, convidar os leitores à reflexão e, a partir destas entrevistas, “ensinar profissionais numa missão também comprometida com a transformação. Deste ponto de vista, é relativamente frequente dar formação quer aos novos guardas prisionais, quer a técnicos de reeducação e reinserção social”. 


Além destas ações de formação, Dália Costa tem tido contacto frequente com o meio prisional, por dar aulas numa pós-graduação em Criminologia e Reinserção Social. “Muito habitualmente fazemos visitas a estabelecimentos prisionais [EP] enquadradas nesta dimensão académica”.


A professora dá conta do grande objetivo da obra: “Gostava de frisar um conceito que usamos, em vez do termo depoimento. Nós falamos, no livro, em ecos biográficos. Porque não são biografias, não é a história de vida das pessoas, é uma interpretação que um familiar faz da sua percepção, da sua experiência, em relação a ter alguém em reclusão. Por isso é que falamos em eco”, esclarece Dália Costa.

“É uma experiência que faz eco naquela pessoa em particular [que foi entrevistada]. Não quer dizer que um indivíduo que está a cumprir pena de prisão efetiva tenha três irmãos e a experiência seja igual para todos. Por isso é que é um eco, qualquer coisa que faz uma ressonância naquela pessoa”.


As autoras escolheram 24 entrevistados e o número não foi um acaso. “São 24 de propósito porque quisemos criar na sociedade, em geral, algum tipo de eco. Queremos que as pessoas reflitam acerca do que é ter alguém a cumprir uma pena de prisão efetiva”, prossegue Dália Costa. “Há um bocadinho a ideia, em Portugal e também lá fora, que isto é algo que acontece aos outros. Na realidade, em Portugal, grosso modo, temos 12 mil reclusos e já chegámos a ter 15 mil. Isto faz eco nas famílias e tem de fazer eco na sociedade, porque pode acontecer com qualquer pessoa. Qualquer um de nós pode vir a ter um familiar preso ou cometer um crime e tornar-se recluso”.


Além disso, este “eco na sociedade tem também a ver com aquilo que o legislador sugere, que são as medidas alternativas, a serem cumpridas em meio aberto. A sociedade tem de estar disponível para que o legislador possa aplicar estas medidas alternativas, como por exemplo, o trabalho a favor da comunidade. Quando isso pode ser aplicado, depois quem é que acolhe esse homem ou mulher, para cumprir essa pena?”, questiona Dália Costa.


Na preparação das entrevistas houve “uma preocupação de variedade. Tivemos indivíduos de ambos os sexos, com relações familiares [com o recluso] diversificadas, idades diversas, diferentes nacionalidades e etnias. Era esta a preocupação, sem sermos exaustivas. O livro não é uma tese de doutoramento mas a metodologia e o rigor estiveram presentes”, assegura Dália Costa. 


Difícil foi chegar até aos entrevistados. “Ainda há muito estigma e vergonha. As pessoas têm receio de falar e dar a cara, por isso todos os nomes são fictícios. Para se chegar a estes familiares tem de ser através de profissionais que já estejam no terreno. Foram estes que perguntaram às pessoas se estavam interessadas em falar connosco e pediram autorização para nos darem os contactos. Mas, de início, foi difícil. Houve pessoas que aceitaram mas depois desistiram”, explica a jornalista Cidália Pecegueiro.


Por detrás de cada depoimento há uma história de vida. Um relato  dos sentimentos que vivencia quem tem um familiar preso, as condições em que são feitas as visitas e também o que se passa na prisão. “Temos mães com sentimento de impotência em ajudar os filhos e, ao mesmo tempo, questionam-se: Por que é que o meu filho caiu em desgraça e eu não consegui evitar? É um tipo de sentimento que, por exemplo, as esposas ou namoradas não têm. Porque a mãe acompanhou o desenvolvimento daquele filho, assistiu à evolução dos comportamentos delituosos e não pode fazer nada.

Em alguns casos, o desespero, a falta de apoio por parte das instituições que deviam apoiar, é de tal ordem, que a prisão surge como uma luz ao fundo do túnel. Pensam coisas do género: Vamos lá ver se ele se endireita. Há uma certa culpa de não ter conseguido educar de forma adequada e de não ter conseguido impedir que aquele jovem se envolvesse com as más companhias, esta também é uma expressão muito utilizada”, desvenda Cidália Pecegueiro. 


Diferentes parentescos implicam diversas vivências. “Além destes sentimentos das mães, há alguns que são comuns a qualquer familiar: o desespero, a necessidade de recorrer a tratamentos para a ansiedade e depressão, muita dificuldade em conciliar a vida laboral com as visitas e o apoio ao recluso. Toda esta dimensão de conciliação é muito difícil”, destaca a coautora de Prisão Paralela.


As condições de vida nas prisões acabam por ser conhecidas também através dos relatos dos familiares, espelhados neste livro. “Muitas familiares levam comida, porque a comida na prisão é péssima. Isto é uma queixa transversal aos diversos EP. As principais queixas dos reclusos prendem-se com a comida e o acesso à saúde. Ainda em relação às esposas e namoradas há uma certa culpa porque o recluso exige um comportamento determinado”, prossegue a jornalista. “Por exemplo, o recluso tem 15 minutos para telefonemas e telefona à mulher ou à namorada. Telefona constantemente e ela não atende, porque não pode. Ou se atende, o recluso pergunta logo onde é que está. Há uma exigência de saber onde é que a pessoa está, o que revela controlo e ciúme. De resto, comum a todos os familiares, é o desespero, a impotência perante o que está a acontecer aos filhos ou aos maridos”, resume Cidália Pecegueiro.


As visitas são outro momento crítico para os familiares dos reclusos. “As pessoas sentem-se quase julgadas. A visita é sujeita a todas as regras de segurança  necessárias. Talvez a forma de a segurança agir, na entrada das visitas possa ser questionada”, analisa Dália Costa. “São feitas revistas por apalpação, a suspeição é permanente, muitas vezes até sobre a comida que as visitas levam, como bolos, que acabam por ser desfeitos. As pessoas sentem-se ofendidas. Obviamente que temos de compreender a necessidade securitária, mas o sistema é pouco delicado no tratamento”, prossegue a professora.


Dália Costa sugere: “Se tivéssemos, em Portugal, possibilidade de recorrer a mais meios eletrónicos, de controlo e vigilância, não só em relação a metais mas também a drogas, ou recorrer a cães, à cinotecnia, isso seriam formas de evitar o que as pessoas sentem como humilhante”.


Nas visitas há, sobretudo, mulheres. “Quando o recluso é mulher normalmente o namorado ou marido vai-se afastando do relacionamento”, relata Dália Costa. “Quando é um homem, as mulheres cuidam: as mães, as namoradas, as filhas”. Cidália Pecegueiro completa: “As entrevistadas referiam chamar-lhes muito a atenção não verem homens nas visitas”.


Os familiares acabam por, ainda,  desvendar um os principais anseios e desejos dos reclusos. “Quanto a ansiedades, depende em que altura estão do cumprimento da pena. Quando ainda lhes falta cumprir, por exemplo, quatro anos, não querem pensar no futuro, querem centrar-se no presente, para não sofrerem. Quando falta menos de dois anos para saírem referem muito o desejo de emigrarem, como se quisessem começar do zero noutro sítio”, explica Cidália Pecegueiro.

“Outro desejo dos reclusos é o de montar negócios próprios e criar o próprio local de trabalho. No fundo, é uma forma de evitar a estigmatização, porque ao saírem da prisão muitos não conseguem encontrar trabalho. A sociedade ainda é feita de muito preconceito”.


Após terem escrito este livro, as autoras deixam um conselho para quem tem um familiar preso. “Devem partilhar as suas vivências. O que temos são vozes dispersas. Há familiares pelo país inteiro, para não dizer fora de fronteiras, em grande sofrimento. A vergonha faz com que sofram dentro das suas casas, dentro dos seus corações e não partilhem”, resume Dália Costa. Cidália Pecegueiro acrescenta: “A única indicação que poderia dar a estes familiares é a de tentaram criar algo do género dos Alcoólicos Anónimos, uma associação em que pudessem partilhar experiências". 

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