Procuradores do MP, professores e agentes da PSP estão há anos sem acesso à Medicina do Trabalho
Em mais de 20 anos de serviço como procuradora do Ministério Público (MP) nunca tive uma consulta de Medicina do Trabalho. O MP, garante da legalidade em Portugal, não cumpre a lei”, afirma ao DN fonte que não quis identificar-se. Uma informação confirmada pelo presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), Paulo Lona, que afirma tratar-se de uma “situação de ilegalidade”.
Sem autonomia financeira, explica, cabe ao Governo fazer cumprir a lei. “Os únicos que têm Medicina do Trabalho são aqueles que estão na Procuradoria-Geral da República (PGR) ou no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). “É obrigatório para todas as empresas, mas os procuradores, tirando os poucos atrás referidos, não têm. Ou seja, a grande maioria dos procuradores do MP não têm acesso à Medicina do Trabalho. Já tivemos uma reunião com a ministra e esperamos que a situação se resolva em breve”, adianta.
Questionado sobre o motivo do não-cumprimento da lei, Paulo Lona diz ser mais importante que a lei seja cumprida, do que determinar o que impede o incumprimento. Contudo, admite que, “da parte da PGR, será uma questão financeira, da parte do Ministério da Justiça poderá estar em causa o facto de não se considerarem competentes”. “O Estado tem obrigação de prestar serviço aos funcionários públicos e é uma obrigação prevista na lei”, sublinha.
Para o presidente do SMMP, estas falhas no acesso à Medicina do Trabalho impedem a realização das recomendações, no âmbito do desgaste profissional, indicadas no estudo Autonomia administrativa e financeira da Procuradoria-Geral da República (maiores competências, maior responsabilização). O documento retrata uma classe em risco de burnout e aponta urgência da criação de meios de prevenção e resposta.
De acordo com o estudo, mais de 15% dos magistrados do MP enfrentam um risco elevado de burnout e mais de 70% um risco muito elevado para a saúde.
Sindicato da PSP admite queixa no Tribunal Europeu
A Polícia de Segurança Pública (PSP) também quer ver a lei cumprida para que os agentes possam, por exemplo, ter serviços moderados em caso de doença. Armando Ferreira, presidente do Sindicato Nacional da Polícia (Sinapol) lamenta a inexistência de Medicina do Trabalho.
Esta é uma das grandes reivindicações do sindicato. O Sinapol “está a lutar” para que todo o pessoal com funções policiais possa usufruir de “exames médicos gratuitos e sigilosos, destinados a avaliar o estado de saúde, físico e psicológico, com intervalos regulares de 3 anos até aos 40 anos de idade, de 2 anos até aos 50 anos de idade e anuais a partir dos 50 anos de idade, em cumprimentos das regras existente sobre a Medicina no Trabalho”.
“Não temos Medicina do Trabalho e tem sido uma das nossas lutas. Os sindicatos chegaram a negociar com o ex-ministro Eduardo Cabrita, o processo ficou finalizado e pronto para ser transformado em legislação, mas, entretanto, o Governo de António Costa caiu, em 2021. O novo ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, na altura, não deu seguimento”, recorda. Segundo Armando Ferreira, o então titular da pasta do Ministério da Administração Interna (MAI) terá justificado o impasse com questões orçamentais. “O que nos foi dito era que as contas do que seriam as despesas anuais não tinham sido bem-feitas e que seriam superiores às estimadas. Teria de ser tudo refeito. Desde então, não houve mudanças”, afirma.
O presidente do Sinapol começou a carreira em 1994 e nunca teve acesso a qualquer consulta de Medicina do Trabalho e sublinha não haver qualquer tipo de diploma de saúde e segurança no trabalho. Armando Ferreira, não tem dúvidas e afirma: “Está a ser violada a legislação nacional.” Por isso, se a situação não se resolver em breve, o responsável admite queixa ao Tribunal Europeu. “Não descartamos levar a questão a Bruxelas”, salienta. Para o sindicalista, a justificação “com os números e as contas feitas” leva o Estado a poupar muitos milhões. “Seriam 10 milhões por ano. Valor que José Luís Carneiro disse estar errado, pois entendia que era mais do dobro. Tendo em conta que o processo negocial começou há vários anos, é uma poupança grande”, refere.
Para contornar as falhas no acesso às consultas de Medicina do Trabalho, os agentes da PSP têm recorrido ao seu subsistema de saúde, pagando as consultas e exames. “Deveria ser o Estado, enquanto entidade patronal a suportar essas despesas. Conto que seja o próximo Governo quem vai resolver este problema”, conclui.
Guardas prisionais voltaram a ser seguidos pela Medicina de Trabalho há 8 meses
Depois de “muita luta”, os guardas prisionais conseguiram ver a lei cumprida. O presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional (SNCGP), Frederico Morais, conta ao DN que, para fazer face à falta de acompanhamento “durante anos”, foi criada uma linha de apoio psicológico, em 2021, porque se encontravam “completamente abandonados”.
“Estivemos 6 ou 7 anos sem Medicina do Trabalho e, mesmo agora, não é 100% eficaz. A única coisa que temos é análises e uma consulta para verificação dessas análises. Precisávamos de apoio psicológico, mas o Estado português não nos acompanha”, adianta.
Frederico Morais salienta o facto de os casos de suicídio de guardas prisionais, apesar de não muito expressivos, serem preocupantes. “Nos últimos 4 anos tivemos 4 casos de suicídio. Um deles com arma de serviço, o que quer dizer muito, pois significa que está revoltado com os serviços. Outro guarda enforcou-se com o cinto de serviço e dois usaram a arma pessoal”, conta.
O presidente do SNCGP sublinha ainda a necessidade de acompanhamento dos familiares dos guardas, pois estes “levam muita coisa para casa, como tuberculose ou sarna, por exemplo”. Pede, por isso, o regresso da possibilidade de inscrição dos cônjuges na ADSE “como era antigamente”. Pedido já efetuado à secretaria de Estado da Administração Pública.
Associação Jurídica pelos Direitos Fundamentais pede urgência no cumprimento da legislação
Sofia Neves, vice-presidente da Associação Jurídica pelos Direitos Fundamentais (AJDF), conta ao DN que a associação se debruçou, aquando da sua criação, sobre a situação dos docentes, tendo percebido tratar-se de um problema transversal a várias carreiras da Função Pública. Alerta ainda para os inúmeros casos de assédio documentados de funcionários a necessitarem de consulta, obrigados a cumprir as suas funções sem qualquer tipo de ajuste, por não terem acesso à Medicina do Trabalho.
“Há muitos casos de assédio e muitas carreiras afetadas. Há ainda profissões com Medicina do Trabalho ‘avulso’, sem cumprir o que está previsto na lei.” No que se refere aos professores, adianta, serão mais de 100 mil sem acompanhamento. A explicação, refere, pode prender-se com a contenção de custos. Uma situação inaceitável que tem de ser corrigida “com urgência”, de forma a ser cumprida a lei, como o Estado exige ao setor privado. “Até o Ministério da Educação já reconhece tratar-se de uma falha. Isto dura há décadas. Há pessoas com mais de 30 anos de serviço que nunca foram à Medicina do Trabalho”, afirma.
Embora sem estar ainda resolvido o problema, Sofia Neves conta que a AJDF já conseguiu algumas mudanças. “A alta da Junta Médica já segue com indicação de Medicina do Trabalho, conforme previsto por lei”, avança.
A AJDF foi responsável por levar o tema do incumprimento do regime jurídico da promoção da Segurança e Saúde no Trabalho à agenda pública, com incidência na carreira docente. Segundo a associação, num setor onde a maioria dos trabalhadores têm 50 ou mais anos, as falhas tornam-se ainda mais preocupantes.
A lei em vigor prevê a realização de consulta e exames periódicos anuais para os trabalhadores com idade superior a 50 anos e de dois em dois anos para os restantes funcionários. Na consulta, é preenchida a Ficha de Aptidão Médica, um documento que determina a aptidão do trabalhador para o exercício das suas funções. Nesta ficha, quando aplicável, estão especificadas as limitações/restrições ao exercício dos serviços que pode desempenhar, devendo a entidade empregadora respeitar as recomendações.
Na carreira docente, um professor pode ver o horário letivo reduzido, pode assumir totalmente outras funções na escola ou ter apenas algumas restrições, como a não-realização de trabalho burocrático, como as assumidas pelo diretor de turma.
A medicina do trabalho é obrigatória no setor público e no privado e o seu incumprimento dá lugar a coimas.