Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de JustiçaGerardo Santos / Global Imagens

Presidente do Supremo diz que é "urgente colocar a justiça como prioridade" política

Henrique Araújo apontou ao "diálogo e abertura", mas também ao "empenho e espírito de compromisso", como mudanças prioritárias para o poder político encetar agora numa nova legislatura. Já o presidente do Tribunal Constitucional alertou para ameaças à liberdade e dignidade na sociedade.
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O presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) considerou esta quinta-feira ser "urgente colocar a justiça como prioridade da atuação política" e deixou indicações para as várias reformas que entende serem necessárias para o setor.

Num discurso proferido na conferência "A Justiça antes e depois do 25 de Abril", integrada nas comemorações dos 50 anos da Revolução e realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, Henrique Araújo lamentou a "espessa camada de indiferença" que os seus alertas enfrentaram nos últimos anos e que são validados pelas atuais falhas do sistema judicial.

"As intermitências da atuação política num domínio tão fundamental para a vida dos cidadãos e para a democracia conduziram-nos a um presente em que já não é possível disfarçar as vulnerabilidades do sistema", afirmou o juiz conselheiro e presidente do STJ, que insistiu: "Por isso, repito: É urgente colocar a Justiça como prioridade da atuação política".

Sublinhando o cariz inédito da reunião dos presidentes dos quatro tribunais do topo do ordenamento judiciário - STJ, Supremo Tribunal Administrativo (Dulce Neto), Tribunal Constitucional (João José Abrantes) e Tribunal de Contas (José Tavares) - Henrique Araújo descreveu-a como uma "clara demonstração de união e de convergência quanto à necessidade de reafirmar o papel da instituição Justiça na realização do Estado de Direito democrático".

O magistrado, que também preside por inerência ao Conselho Superior da Magistratura (CSM), lembrou o "modelo autoritário, conservador e excessivamente burocrático" do sistema judicial antes do 25 de Abril e assinalou "avanços importantes" já nos anos seguintes.

Porém, notou que também se registaram "períodos de absoluto alheamento ou de mera atividade de gestão corrente, sem qualquer ação prospetiva", e deixou uma lista de mudanças prioritárias para o poder político encetar agora numa nova legislatura, apontando ao "diálogo e abertura", mas também ao "empenho e espírito de compromisso".

"É preciso agir no fortalecimento da independência do poder judicial e nos níveis de transparência da sua atuação; no modelo de financiamento do sistema de justiça; na concretização da autonomia administrativa dos Tribunais da Relação; na eficácia e celeridade processuais; na formação de magistrados; nas assessorias; no acesso à justiça; na monitorização do impacto da produção legislativa; na dignificação e valorização das carreiras dos oficiais de justiça e funcionários", resumiu.

No ano em que também terá de se jubilar e deixar a presidência do STJ, por atingir os 70 anos de idade, Henrique Araújo expressou ainda o desejo de uma "nova primavera na justiça" e de uma "justiça que honre Abril".

Presidente do Tribunal Constitucional alerta para ameaças à liberdade e dignidade na sociedade

José João Abrantes, presidente do Tribunal Constitucional defendeu no discurso da sessão de abertura da conferência que a Constituição só será "verdadeiramente cumprida" quando se alcançar o "Portugal mais livre, mais justo e mais fraterno" do seu preâmbulo, alertando para "ameaças à liberdade e à dignidade" na sociedade.

José João Abrantes recordou a evolução constitucional na República, sublinhando o papel deste tribunal como garante da "Constituição, dos direitos fundamentais dos cidadãos e do Estado de direito democrático", sendo uma "trave mestra" do regime democrático saído da revolução de 25 de Abril de 1974.

O Tribunal Constitucional (TC), enquanto "guardião da Constituição" de 1976, "tem por missão e razão de ser defender uma Lei Fundamental centrada na dignidade da pessoa humana, o primeiro e o mais imprescindível dos valores do Estado de direito democrático", defende o seu presidente.

"Essa pessoa humana não é uma abstração, são seres humanos, mulheres e homens concretos, inseridos numa sociedade, onde há tensões e contradições, onde existem muitas potenciais ameaças à liberdade e à dignidade dessas concretas pessoas", disse o juiz conselheiro José João Abrantes.

O presidente do TC defendeu que a Constituição "só será verdadeiramente cumprida quando se alcançar plenamente o Portugal «mais livre, mais justo e mais fraterno» de que fala o seu preâmbulo".

Também o presidente do Tribunal de Contas, José Tavares, traçou a evolução da instituição com mais de 600 anos de existência, sublinhando que só a Constituição de 1976, saída da revolução, conferiu a este tribunal superior um enquadramento constitucional "de uma forma mais desenvolvida e completa do que Constituições anteriores", com subsequentes alterações orgânicas e de funcionamento.

"Uma coisa é certa: o Tribunal de Contas de 2024 é substancialmente diferente do Tribunal de Contas de há 50 anos, soube evoluir e creio podermos afirmar ter sido construído passo a passo um Tribunal de Contas moderno, naturalmente, sempre sujeito à melhoria contínua", afirmou José Tavares, que apontou ainda a preocupação da instituição com questões emergentes como demografia, tecnologias da informação, ambiente e alterações climáticas, sustentabilidade da segurança social, saúde, educação, cumprimento da Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, entre outras.

Presidente do Supremo Tribunal Administrativo pede "vontade política" para resolver problemas

Dulce Neto, presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), apelou entretanto à "vontade política" para investir na resposta aos problemas da jurisdição administrativa e fiscal, lamentando a falta de ação do Estado nesta área da justiça.

"A crónica desatenção e o prolongado desinvestimento do Estado nestes tribunais tem inviabilizado o cumprimento do princípio constitucional a uma tutela jurisdicional efetiva, só alcançável quando tivermos meios para assegurar a prolação de todas as decisões em prazo razoável", afirmou a juíza conselheira, ao notar que é aos tribunais administrativos e fiscais que cabe "proceder ao controlo da legalidade da atuação do Estado e demais entidades públicas".

Numa intervenção na conferência "A Justiça antes e depois do 25 de Abril", na Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa), no âmbito das comemorações dos 50 anos da Revolução, a magistrada destacou que os tribunais administrativos e fiscais são aqueles "em que o Estado (em sentido amplo) é sempre o réu", pelo que são necessários meios para resolver "conflitos que, com frequência, se situam na seara dos direitos humanos e de direitos e liberdades fundamentais".

Nesse sentido, vincou a importância de um novo ciclo político se traduzir também em mudanças no setor da jurisdição administrativa e fiscal, que vão desde a atribuição de dinheiro para a criação de gabinetes de apoio técnico e jurídico para os juízes até a questões procedimentais, como o novo sistema de distribuição eletrónica dos processos.

"Haja, portanto, vontade política e coragem a nível orçamental no novo ciclo político que ora inicia para prosseguir com um investimento que terá de ir muito além da aposta na transição digital, resolvendo problemas tão pequenos mas relevantes como aqueles que se verificam na distribuição eletrónica dos processos por um algoritmo que o poder judicial desconhece e que, para além do tempo que consome a funcionários e magistrados, comete frequentemente erros crassos e inaceitáveis, quando não está mesmo inoperacional", observa.

Apesar de ressalvar que as pendências têm diminuído e que o quadro de juízes tem crescido, assinalando ainda a existência de uma magistratura maioritariamente feminina -- algo só possível após o 25 de Abril de 1974 -, Dulce Neto salientou o contributo que uma maior aposta nestes tribunais pode significar perante o "quadro de incerteza e instabilidade" da sociedade.

"A melhor forma de celebrar os 50 anos do 25 de Abril, no quadro de incerteza e instabilidade que a nossa sociedade atravessa, seria reforçar a atenção e o investimento nestes tribunais, sabido que neles irão desaguar, de forma crescente, novos e complexos litígios, seja no domínio de direitos fundamentais, seja no domínio de políticas e medidas públicas", frisou, enumerando as questões ambientais, migratórias, digitais, de saúde ou de contratação pública.

Recordando que antes da Revolução de Abril, as portuguesas "tinham de pedir autorização ao marido para quase tudo", como para trabalhar ou para viajar para o estrangeiro, a primeira mulher presidente de um supremo tribunal em Portugal lançou um alerta para cenários de possível retrocesso nos direitos das mulheres.

"Uma realidade que nos parece hoje inconcebível, mas que importa recordar num momento em que o mundo enfrenta perigosos retrocessos -- mesmo em sociedades livres e em democracias consolidadas -- com a proliferação de mensagens misóginas, discriminatórias e sexistas, alimentadas por retóricas populistas", sentenciou.

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