Plano para migrações é insuficiente para gerir situação mais complexa
O Plano de Ação para as Migrações apresentado pelo Governo a 3 de junho vai no sentido positivo, mas é insuficiente para gerir e controlar a crescente complexidade do fenómeno migratório, que passou de 388 mil estrangeiros em 2015 para mais de um milhão em 2022, considera a Associação Para Memória Futura SEF (APMFSEF).
Constituída por um número “muito representativo” de quadros do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, esta associação acaba de elaborar o seu primeiro relatório de avaliação sobre a Gestão das Migrações em Portugal, que analisa a evolução do fenómeno, elenca as mudanças legislativas e seus efeitos e perspetiva as falhas que vão persistir no novo modelo. Antevêm-se dificuldades generalizadas, diz o relatório a que o DN teve acesso.
Para além das esperadas críticas à extinção do SEF, o relatório arrasa outras medidas tomadas pelo primeiro governo de António Costa, a começar pela figura das ‘manifestações de interesse’, em 2017, que o governo de Luís Montenegro decidiu revogar. Numa carta de apresentação, a associação não poupa nos adjetivos e diz mesmo que as polémicas ‘manifestações de interesse’ foram uma “cedência” de António Costa ao Bloco de Esquerda com consequências nefastas. A sua revogação é uma decisão que vem “pôr termo a uma política migratória de ‘venham agora que depois logo se vê’, que agravou o tráfico humano, a exploração laboral e fragilidade económica e que gerou uma pressão inimaginável em estruturas de recursos frágeis como são as da Administração Pública portuguesa”, aponta o relatório. Por isso, conclui, esta revogação “era uma necessidade no sentido de colocar algum controlo na regulação dos fluxos migratórios em Portugal”.
Registaram-se mais de um milhão de manifestações de interesse nos últimos sete anos, que contribuiram para que os estrangeiros em território nacional quase triplicassem em sete anos. Por outro lado, o fenómeno migratório tornou-se mais complexo, envolvendo cada vez mais nacionalidades de novas origens como a Índia, Nepal, Bangladesh ou Paquistão, onde Portugal não dispõe tradicionalmente de estruturas e oficiais de ligação. Registaram-se ainda mais de 60.700 pedidos de proteção temporária, relacionados com a guerra na Ucrânia.
Segundo a APMFSEF, aquela facilitação do processo de entrada choca mesmo com as diretivas comunitárias. “O SEF foi emitindo alertas sobre os efeitos das sucessivas alterações legislativas na área da Lei de Estrangeiros, em particular, sobre as consequências na alteração da legislação desde 2017, e desde então com alterações cada vez mais abertas e com um efeito de chamada, ao ponto de, em bom rigor, a transposição das diretivas comunitárias, onde são definidos critérios uniformes de entrada e residência no espaço europeu, serem sobrepostas pelos artigos e excepção da legislação nacional”.
Gestão e controlo prejudicado
E agora? Até que ponto podem as mudanças anunciadas no Plano de Ação para as Migrações contribuir para uma melhor gestão e controlo destes fluxos? No geral, o documento defende que, com excepção das medidas de proteção internacional – que podem ficar a cargo de uma entidade meramente administrativa, sem grande prejuízo, mas, ainda assim com significativas perdas de contexto - , todas as restantes competências de gestão e controlo perdem em não ficar concentradas numa entidade com uma visão integrada sobre o tema, como era o SEF. Essa não é, no entanto, a opção pelo Governo, que não prevê o regresso daquela entidade.
“Com o modelo pós-SEF ultra repartido e desarticulado, perdeu-se a visão integrada e holística”, criticam os ex-funcionários. Por isso,“embora o Plano de Ação para as Migrações tente melhorar alguns aspetos, prevemos dificuldades de gestão e operacionalidade na maioria das áreas”.
Em primeiro lugar, na área da documentação, cuja competência está atribuída à AIMA e IRN (autorizações de residência e prorrogações de permanência) e ao MNE, GNR e PSP (emissão de vistos consulares e nas fronteiras, respetivamente).
Os ex-quadros do SEF consideram positiva a transferência da receção dos pedidos de renovação do IRN para a AIMA, mas alertam que “não ultrapassa as dificuldades criadas com a dispersão de conhecimentos e competências em áreas muito específicas e que exigem especialização”.
Sobre a anunciada criação de uma estrutura de missão que integre funcionários da AIMA, Inspetores do ex-SEF (atualmente afetos à Polícia Judiciária) e, eventualmente, outros profissionais ou especialistas recrutados temporariamente, para tratar os mais de 400.000 processos pendentes, questiona-se a adequação dos meios e o custo associado.
Ao mesmo tempo, lembra-se que, apesar de o número de controlos fronteiriços ter passado de 9,9 milhões de pessoas em 2006 para 22,8 milhões de pessoas em 2022, não houve correspondente reforço de recursos humanos e técnicos. E é isso mesmo que a associação reclama ser necessário para concretizar a pretendida imigração por via legal, através de vistos, ou seja, um reforço significativo dos consulados, bem como interligação com outros consulados e estruturas policiais.
Competências na PSP deveriam estar na PJ
Em suma, “é premente restaurar pontos de contacto nacional conhecedores, consistentes e operacionais, que, entretanto, se perderam, para continuar a garantir a aplicação uniforme e conforme com as regras ali previstas, de todos os diplomas legislativos da UE”, sustentam.
A APMSEF aponta o “recurso abusivo aos institutos de proteção internacional por quem, à partida, não reúne requisitos para o efeito”, e que pode deixar quem realmente dele precisa sem resposta, razão pela qual defende os mecanismos eficientes de identificação da efetiva necessidade de proteção internacional, que o SEF desempenhava, apontando reticências à capacidade de a AIMA ou outra entidade o poderem fazer com a mesma qualidade.
Discordância merece igualmente a integração do ACM (Alto Comissariado para as Migrações) na AIMA, uma vez que “ao misturarem-se competências de duas áreas distintas - processos administrativos e medidas de apoio à integração – prejudicou-se a concretização das medidas necessárias em cada uma das fases (acolhimento, primeiro, integração, depois) e pôs-se termo a mais uma marca distintiva, positiva, do sistema português de gestão migratória”.
Sobre o processo de expulsão de imigrantes, a APMSEF percebe a alteração prevista no plano do Governo, com a criação de uma unidade de estrangeiros e fronteiras numa força de segurança – e não na AIMA -, mas contesta que ela “seja prevista na PSP e não na PJ, para onde transitaram centenas de ex-inspetores do SEF que, atenta a sua formação profissional base, estariam desde o primeiro minuto aptos e preparados para a especificidade dessa missão”.
A diluição de competências por várias entidades ao invés de uma maior centralização é um crítica transversal, que resulta da extinção do SEF, desde as bases de dados, agora mais centralizadas no Gabinete de Segurança Interna, ao controlo de movimento de pessoas nas fronteiras.
“Esperemos que as Forças de Segurança e outras entidades com competência neste domínio consigam suprir rapidamente a lacuna criada na área da peritagem documental de estrangeiros e de aconselhamento técnico às autoridades emissoras de documentos de residência, identificação e de viagem que os peritos do SEF asseguravam”.
“A dispersão das competências por diferentes entidades dilui a especialização que tinha sido conseguida pelo SEF, limita a capacidade de representação do País em grupos de trabalho da UE e a operacionalidade no âmbito das agências europeias e fragiliza a situação de Portugal nas relações bilaterais que mantemos com países terceiros na área da imigração, em particular junto dos Estados parte da CPLP”, conclui a análise exaustiva feita pela associação de profissionais, criada logo após a extinção do SEF.