Pandemia ajudou a reduzir consumo de antibióticos. Portugal abaixo da média europeia

Há uma década, Portugal era dos países da Europa que mais consumia antibióticos e que tinha das mais altas taxas de infeções hospitalares. Em 2013 iniciou um programa nacional de prevenção e de controlo e hoje "os resultados são francamente positivos", mesmo com dois anos de pandemia, diz José Artur Paiva. Mas ainda há muito a fazer.
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Na década de 2000 Portugal era dos países que mais consumia antibióticos, quer em ambulatório, através da venda em farmácias, quer nos hospitais. De tal forma que em 2007 a então ministra da Saúde, Ana Jorge, criava, por despacho, uma Comissão Técnica para a Prevenção das Resistências aos Antimicrobianos, a atuar na dependência direta do diretor-geral da Saúde. Os argumentos expostos no documento eram precisamente o facto de "a resistência aos antimicrobianos ser uma das maiores ameaças à saúde pública" e por "Portugal ser um dos países da Europa que apresenta as taxas mais elevadas de resistência aos antibióticos", de acordo com os dados do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC, sigla inglesa).

O retrato envergonhava o país e havia que fazer algo. Depois da comissão criada, começou a ser elaborado um programa nacional de prevenção e de controlo, quer para o uso de antibióticos quer para as infeções bacterianas surgidas em meio hospitalar e resistentes a estes. O programa viria a ser aprovado em 2013 e o caminho que se adivinhava bastante longo, mas ao fim de quase uma década o diretor do Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e a Resistências a Antimicrobianos (PPCIRA) da DGS, José Artur Paiva, diz ao DN que os resultados "são francamente positivos". Aliás, nos dois últimos anos, em plena pandemia, "Portugal foi um dos dois únicos países europeus que conseguiu reduzir o consumo de antibióticos. O outro foi a Noruega".

Levou tempo a inverter a situação no que toca ao consumo de antibióticos, mas a pandemia ajudou. "Com menos infeções respiratórias na comunidade, mas também por uma outra razão, esta negativa, menos acesso dos utentes aos cuidados de saúde, o que todos sabemos que aconteceu", admite o médico Artur Paiva, explicando que, "se os doentes não chegavam ao seu médico, não havia prescrição, não havendo, não havia também consumo de antibiótico".

DestaquedestaqueEm termos de posicionamento, Portugal estará entre os 10 melhores no consumo de antibióticos na comunidade e entre os seis melhores a nível hospitalar

No balanço sobre as infeções bacterianas que surgem em meio hospitalar e que são multirresistentes aos antibióticos as melhorias ainda não são tão evidentes. O médico refere que "a tendência também é de diminuição, mas não com os resultados claros alcançados no consumo de antibióticos".

Na área das infeções, a covid-19 não ajudou. Até porque, e como destaca o diretor do PPCIRA, os doentes críticos da covid-19 correm um maior risco de desenvolverem este tipo de infeção adicional, devido ao próprio estado de debilidade que o vírus deixou no seu sistema imunitário. E quando tal acontece, há uns que resistem à agressão das bactérias, outros não, mas Artur Paiva destaca que, mesmo com a pandemia, "tem-se mantido a tendência de diminuição da incidência em algumas infeções hospitalares".

De acordo com os dados que disponibilizou ao DN e que constarão do relatório que será entregue à tutela e à DGS até ao final deste primeiro trimestre, entre 2019 e 2020 Portugal reduziu em 23% o consumo de antibióticos na comunidade - isto é, através da compra em farmácias - e 4,5% de 2020 para 2021, conseguindo que o consumo global deste tipo de fármaco ficasse abaixo da média europeia. Ou seja, o país registou um consumo de 13,7 DDD (dose definida diária) por mil habitantes, enquanto a média europeia é de 15,0 DDD por mil habitantes.

José Artur Paiva salienta mesmo que, nos últimos seis anos, o país conseguiu atingir uma redução da ordem dos 69% no consumo de quinolonas, uma das classes de antibióticos mais indutoras de resistência bacteriana.

Em relação ao consumo de antibióticos nos hospitais, e ainda segundo os dados disponibilizados pelo diretor do programa nacional, a descida não foi tão acentuada como no ambulatório, mas, mesmo assim, o país também já está abaixo da média europeia, ao ter registado, no mesmo período, "uma redução de 19% no consumo da classe de antibióticos de mais largo espetro, as carbapenemes. Entre 2020 e 2021 a redução foi de 6,3% no consumo de antibióticos hospitalares por doentes saídos", explicou ao DN.

No que toca à resistência bacteriana, entre 2013 e 2020 o médico refere ter havido uma redução na maioria das bactérias, de 48% para 30% em relação ao Staphylococcus Aureus na resistência à meticilina, de 70% para 15% em relação ao Acinetobacter na resistência às carbapenemes, e de 15% para 10% a resistência extensiva da Pseudomonas. "Conseguimos reduzir francamente o consumo de antibióticos. Os resultados são muito claros, não só na perspetiva global de consumo de antibióticos, como no foco especial dos antibióticos que são mais indutores de resistência das bactérias, caso das carbapenemes no meio hospitalar e das quinolonas na comunidade."

No entanto, e apesar de se ter conseguido inverter uma situação que se prolongou durante décadas, há um único senão a salientar: "Um tipo de resistência que aumentou significativamente, a Klebsiella resistente a carbapenemes, que passou de 2% em 2013 para 12% em 2020", assume José Artur Paiva.

Por isso, e quase uma década depois da aprovação do programa e da sua aplicação no terreno, admite haver "ainda muito por fazer" para se melhorar a performance nestas áreas. Até porque a pandemia também veio trazer alguma aprendizagem a estas áreas. Uma delas é a necessidade de "um sistema de vigilância epidemiológico integrado. Isto é, temos de deixar de vigiar o consumo de antibióticos num sistema de informação, a resistência de bactérias noutro e as infeções hospitalares ainda noutro. A vigilância epidemiológica tem de ser registada num só sistema, para podermos estabelecer razões de causalidade". Aliás, esta será mesmo uma das medidas a ser recomendada no documento a entregar à tutela.

Por agora, uma coisa é certa. "Tanto no consumo de antibióticos na comunidade como a nível hospitalar, podemos dizer que já estamos na metade boa da Europa. Na metade que consome menos antibióticos de entre todos os países que registam dados no ECDC e na OCDE, sendo que 80% são os 27 da União Europeia." Artur Paiva não avança com lugares de tabelas, como argumenta, "não estamos a falar de uma "liga de futebol"", mas não deixa de referir que, em termos de posicionamento, Portugal estará entre os 10 melhores no consumo de antibióticos na comunidade e entre os seis melhores a nível hospitalar.

DestaquedestaqueNos últimos seis anos o país conseguiu atingir uma redução da ordem dos 69% no consumo de quinolonas, uma das classes de antibióticos mais indutoras de resistência bacteriana

O percurso foi longo, mas a inversão da situação enorme. "Até 2012 éramos o país mais consumidor de quinolonas, que, como disse, são dos mais indutores de resistência às bactérias, e foi precisamente nesta área que se alcançou uma redução de 69%. Desde 2013 que o nosso programa se focou muito nesta preocupação."

Segundo explica, o programa aprovado em 2013 teve logo a preocupação de criar uma estruturação vertical para melhor funcionar. A começar na autoridade central, DGS, com um grupo de trabalho que faz a ponte também com o Infarmed, depois com grupos de trabalho nas autoridades regionais (administrações regionais de saúde) e, por fim, com grupos de trabalho nas unidades locais de saúde: "Cada unidade tinha de ter pessoas que trabalhariam esta área."

E assim foi. Até há dois anos, admite. Um dos pontos negativos da pandemia relativamente ao trabalho que se estava a fazer no terreno foi precisamente o de ter "sugado a esmagadora maioria destas pessoas para o combate ao vírus. Do ponto de vista dos recursos, o efeito de sucção da pandemia resultou numa sobrecarga de trabalho tal que acabou por limitar o investimento em outras atividades de prevenção, nomeadamente em ações sobre a prescrição de antibióticos".

Parecendo que não, isto é muito significativo, porque "a melhoria no consumo de antibióticos teve três intervenções. A primeira dirigida ao cidadão, no que toca à literacia sobre o tema, como os efeitos do uso inadequado de um antibiótico, a segunda dirigida aos profissionais, aos prescritores, com normas e recomendações sobre o uso destes fármacos e regras sobre boas práticas, e a terceira assentou na definição de estratégias de acompanhamento da prescrição e do seu feedback, com o objetivo de se melhorar a prática e os efeitos desta nos doentes. A partir daqui, Portugal passou a ter também um Programa de Apoio à Prescrição de Antibióticos. "Em cada hospital e em cada agrupamento de centros de saúde (ACeS) passou a existir uma equipa que acompanha a prescrição de determinadas tipologias de antibiótico, como de largo espetro. Estas equipas passaram a interagir diretamente com quem prescreve e a avaliar se tal prescrição é mesmo necessária ou não. Foi um trabalho de parceria e de educação que se iniciou e que começou a dar resultados", argumenta.

Mas não só. A sobrecarga de trabalho "também criou dificuldades no acesso dos doentes aos cuidados de saúde primários". Ou seja, "as pessoas foram menos aos cuidados de saúde e, portanto, houve menos prescrição de antibióticos". E isto é "outro dos pontos negativos da pandemia". O ponto positivo é que, ao mesmo tempo, fez com que a prescrição de antibióticos diminuísse francamente na comunidade. "Tivemos períodos de isolamento, mais tempo em casa, adquirimos outros hábitos, como uso de máscara e higienização frequente das mãos, e isso tam bém reduziu o aparecimento de outras infeções respiratórias".

O médico explica que em 2019 e 2020 já se notava uma redução no consumo deste tipo de medicamentos na comunidade e que esta redução também se manteve em 2021, apesar de o país ter tido um confinamento geral longo no início do ano. Quanto ao consumo dentro das unidades hospitalares, essa descida não se confirma. "Tivemos muitos internamentos por covid grave e estes doentes acabavam por ficar tão debilitados e frágeis pela doença que adquiriam infeções adicionais, infeções hospitalares, o que fez com que, a nível hospitalar, o consumo de antibióticos, e tendo sempre como denominador o número de doentes saídos, aumentasse neste dois anos de pandemia, sobretudo em 2020."

O país mudou o retrato de há uma década, mas é preciso retomar o trabalho que estava a ser feito. Como sublinhou o diretor do PPCIRA, "é urgente um sistema de vigilância integrado". É urgente que "se encare as práticas de controlo e de boa prescrição de antibióticos à luz de uma estratégia que não pode estar apenas baseada na educação, isto é, em normas para educar os profissionais", mas também que é necessária uma estratégia que leve "a uma mudança comportamental". Por exemplo, "as tarefas nesta área exigem tempo. É preciso que as unidades de saúde, quer sejam da rede hospitalar, dos cuidados primários ou dos cuidados continuados, deem um tempo específico aos profissionais para esta matéria. Se formos ver o despacho fundador do programa, isto está lá previsto, mas na prática não é implementado". Por fim, "é preciso reconhecer que tivemos muito melhores resultados no consumo de antibióticos do que no controlo das infeções hospitalares e resistência das bactérias". E para mudar esta tendência é preciso apostar nos recursos humanos, "numa dotação de pessoal que permita um ratio de enfermeiros por doente adequado".

Como destaca, "o controlo das infeções hospitalares não passa só por uma questão clínica ou de boas práticas, mas também pelos recursos humanos e pela arquitetura dos espaços". Portanto, é preciso também apostar na "modernização da arquitetura dos espaços, para que estes permitam reduzir a transmissão de micro-organismos resistentes", explicando: "Uma enfermaria com seis doentes e só com uma casa de banho partilhada fomenta esta transmissão, quando o risco seria muito menor se tivermos enfermarias mais pequenas, de dois doentes, por exemplo, com uma casa de banho."

No final, José Artur Paiva, médico de medicina intensiva no Hospital São João, no Porto, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e presidente do Colégio da Especialidade de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos, conclui: "Se há lição que a pandemia trouxe à área das infeções e das resistências bacterianas, foi a de que é cada vez mais necessária uma boa avaliação do risco de todos os doentes à entrada em qualquer unidade de saúde. Se é logo feita uma avaliação do risco na admissão de um doente, ou seja, se este é portador ou não de bactérias, como se fez para o SARS-CoV-2, impondo políticas de isolamento, é um passo para se prevenir o desenvolvimento de mais infeções."

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