“Há uma questão que nos preocupa muito que é a saúde mental de quem cuida”, defende Solange Ascensão, criminóloga e coordenadora das equipas de rua da Crescer, que atuam em Lisboa..Também ela já se deparou com situações limite. “Num dos casos estava com uma colega enfermeira e fomos chamadas. Quando chegámos tínhamos uma pessoa em overdose de opiáceos. Estava azul, não reativa, olhos revirados, prostrada no chão. Iniciámos o suporte básico de vida, administramos naxolona e chamámos o INEM. Felizmente, salvou-se”..Noutra ocasião, a dificuldade foi aumentada pela resistência do doente. “Esta situação ficou muito comigo, era uma sobredosagem de cocaína. A pessoa estava a suar muito, com discurso arrastado, confusão mental e não se aguentava nas pernas. Foi um trabalho muito grande de convencê-lo a aderir ao INEM”, explica Solange Ascensão.“Conseguimos convencê-la, accionar o INEM, já no hospital ficou ligada à máquina ECMO por causa de uma trombose grave”..O caso acabou bem. “Entrou no programa Housing First, está com consumos muito reduzidos e deixou de injetar-se. Fizemos todo este percurso com a pessoa, foi muito forte e é muito marcante”..Na Crescer há apoio para os profissionais. “Há pouco tempo veio uma pessoa estagiar, que está a fazer o curso de Medicina Tradicional Chinesa, e que faz um tratamento de massagens aos trabalhadores, para reduzir o stress. A par disso temos uma pessoa que avalia como está a equipa do ponto de vista emocional. De resto, temos de ter estratégias para fazer a nossa própria gestão, porque também somos humanos”, resume Solange Ascensão..Na Sala de Consumo Assistido de Lisboa, única no país e localizada na Quinta do Loureiro, “já tivemos cerca de 50 overdoses, apesar de ninguém ter morrido”, contabiliza o enfermeiro Paulo Caldeira, responsável pela área da saúde naquele centro de atendimento a dependentes, a funcionar desde 2021..Situações difíceis acontecem todos os dias e, segundo a equipa da Sala de Consumo Assistido, as overdoses mantêm uma tendência ascendente. Muitas acabam por ser revertidas e nem sempre acontece a morte do toxicodepente. Quanto aos óbitos, segundo dados do SICAD, antecessor do atual ICAD (Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências) estes têm vindo a subir desde 2017, ano em que houve 38 mortes, até 2019, com 63 óbitos. Em 2020 houve um ligeiro decréscimo, com 51 vítimas mortais de overdose, mas em 2021 assistiu-se a um pico de sobredosagens fatais, com 74 vítimas. Esse número baixou, muito ligeiramente, em 2022, para os 69 óbitos. .Nas ruas, haverá mais substâncias psicoativas proibidas em circulação e, no ano passado, as apreensões de cocaína voltaram a bater o recorde: 21,7 toneladas, mais 31,4% do que em 2022. .De acordo com o relatório sobre o Combate ao Tráfico de Estupefacientes em Portugal, a que o DN teve acesso, é a quantidade mais elevada apreendida pelas autoridades da última década e meia. Já este ano, no dia 26 de junho, a PJ destruiu, por incineração, cerca de sete toneladas de vários tipos de drogas ilícitas..O número de consumidores, em todo o mundo, cresceu 20% na última década. Atualmente, estima-se que existam 292 milhões de consumidores, segundo dados do Relatório Mundial sobre Drogas 2024 do UNODC. .No terreno, “as equipas trabalham não só nas drogas mas com as principais e maiores vulnerabilidades. Estão sujeitas, diariamente, ao sofrimento humano”, começa por explicar Hugo Faria, psicólogo e coordenador da Sala de Consumo Assistido. “Lidamos com este sofrimento humano e, ainda para mais, a nossa grande ferramenta é a relação com o outro. Estamos a empatizar com o sofrimento da vida de uma pessoa, de uma recaída, de uma ressaca, de uma morte. Isto deixa marcas em todos nós”, analisa o psicólogo. .Paulo Caldeira conta vários casos de situações de vida ou morte, em que foram revertidas overdoses. “O caso mais grave que tivemos aqui foi numa situação em que estávamos numa reunião e aconteceu à nossa porta, ali num carro. Uma rapariga estava inanimada dentro do carro, alguém estacionou e deu o alerta”, recorda o enfermeiro. “O desafiante foi que nós não sabíamos o que é que a pessoa tinha consumido. Tivemos de fazer um protocolo de ir respondendo ao que estávamos a ver. Administramos naloxona [medicamento que serve para reverter overdose de opiáceos] e oxigénio, porque a pessoa não estava a respirar. Não reverteu. Ponderámos se teria tomado benzodiazepinas e administramos flumazenil [reversor de benzodiazepinas]: não reverteu e começou a convulsionar, que é um efeito secundário do flumazenil. Aí tivemos de dar benzodiazepinas para deixar de convulsionar. Entretanto, a pessoa começou a recuperar, saiu daqui a respirar acordada. Foi para o hospital e lá os médicos decidiram ventilá-la e esteve dois dias nos cuidados intensivos”, continua Paulo Caldeira. “Por fim, soubemos que tinha realmente tomado opiáceo [heroína] mas tinha associada uma diabetes muito descompensada”..Outra situação marcante aconteceu com um utente que “esteve preso seis meses, sem consumir, e quando saiu veio cá e quis tomar a mesma quantidade de heroína. O organismo já não tinha a mesma tolerância e devia ter tomado uma quantidade menor. Tentámos negociar com ele mas estava irredutível e quis fazer a mesma dose. Nós sabíamos que ia dar porcaria e já estávamos preparados”, observa Paulo Caldeira. “Nestes casos, a nossa avaliação é que é preferível fazerem esse consumo cá dentro. Deu uma overdose e estivemos 40 minutos para a conseguir reverter só que acabou muito mal”, lembra-se o enfermeiro. “Ele saiu daqui acordado, na maca, foi para o hospital e saiu. Veio cá mais tarde agradecer, disse que tinha sido um grande susto e que não ia voltar a injetar-se. No dia seguinte, quando chegámos aqui, soubemos ele tinha morrido durante a noite, muito perto, ali no mato. Ficámos de rastos porque tínhamos conseguido salvar uma vida que, pouco depois, se perdeu, porque estávamos fechados. Acho que foi a situação mais desgastante que já vivemos”, observa o enfermeiro Paulo Caldeira..Hugo Faria acrescenta: “Há um investimento brutal, em salvar uma vida de uma pessoa. Só isto é uma situação muito agressiva. A equipa mobiliza-se, há ali um momento de grande adrenalina, e quando se consegue, a coisa abranda. Só que, neste caso, não houve tempo para digerir tudo porque a pessoa, afinal, morreu. Isso provoca imensas coisas: sentimentos de impotência, questões que se colocam se fizemos tudo o que devíamos ter feito, que a sala devia estar aberta 24 horas por dia. Foi um falhanço. Por isso, há muitos momentos que vivemos aqui, diariamente, que não se diluem no horário de trabalho. São situações dramáticas e não nos conseguimos desligar desses factos”, observa o psicólogo e coordenador da Sala de Consumo Assistido..Há apoios específicos para estes profissionais. “Temos uma equipa de supervisão clínica e um terapeuta externo, que nos visita de 15 em 15 dias, e faz uma reunião onde se fala sobre as questões que foram vividas no trabalho. Isto é uma forma de irmos encaixando o que vivemos diariamente”.